sábado, 26 de março de 2022

Documentos eletrônicos no direito brasileiro

 por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior


Resumo: O artigo examina o marco regulatório dos documentos eletrônicos no Brasil, a partir do reconhecimento da validade jurídica das assinaturas digitais, incluindo recentes leis que disciplinam a prática de atos públicos e privados em meio digital.

Palavras-chave: Direito digital brasileiro. Documentos eletrônicos. Assinaturas digitais. 

Abstract: The article examines the regulatory framework for electronic documents in Brazil based on the recognition of the legal validity of digital signatures, including recent laws that regulate the practice of public and private acts in digital media.

Keywords: Brazilian digital law. Electronic documents. Digital signatures.


Sumário: Introdução. 1. A manifestação de vontade nos atos jurídicos e sua instrumentalização. 2. O conceito tradicional de documento. 3. Do documento físico ao documento eletrônico.  4. O documento eletrônico no Brasil. 5. Diferença entre documento eletrônico e representação visual de seu conteúdo. 6. Diferença entre documento eletrônico e documento físico digitalizado. 6.1. Normas sobre a digitalização de documentos públicos e privados. 7. A Lei n.º 14.063/2020 e as novas normas sobre assinaturas eletrônicas. 8. Aplicações dos documentos eletrônicos. 9. Características dos documentos eletrônicos. Conclusão. Referências.


Introdução

O Direito Digital é um recente ramo do Direito que lida com aspectos do fenômeno jurídico relacionados ao processamento de informações em sistemas digitais, isto é, sistemas eletrônicos que se utilizam de códigos binários para o armazenamento e transmissão de dados. Versa sobre os fatos e atos jurídicos que tenham relação direta com sistemas de informática, isto é, que sejam praticados no âmbito de plataformas de hardware e software ou que tenham repercussão em sistemas dessa natureza. (PINHEIRO, 2021)

Trata-se de um amplo campo de estudo jurídico de aspecto transversal, que perpassa todos os ramos do Direito, à semelhança do Direito Ambiental, na medida em que a informatização da sociedade e a digitalização da manifestação de vontade têm produzido importantes reflexos no Direito Civil, no Direito Penal, no Direito Processual, no Direito Notarial e Registral e no Direito Empresarial, para citar apenas os mais evidentes. (SOUZA, 2021)

Uma das criações que se encontram no centro da revolução digital no meio jurídico, e que constitui um dos principais elementos que alçaram o Direito Digital ao patamar de importância que hoje apresenta, é o documento eletrônico, que tem rendido a elaboração de atos normativos recentes, voltados à regulamentação de sua adoção em diferentes setores.

Nesta breve consideração, examina-se o conceito de documento eletrônico, sua normatização no Direito brasileiro e os impactos de sua utilização em alguns campos da atividade pública e privada.

1. A manifestação de vontade nos atos jurídicos e sua instrumentalização

Compreender a natureza jurídica dos documentos eletrônicos pressupõe o entendimento do conceito de “documento” para o direito brasileiro, para o que a exposição mais didática é a que parte da diferenciação entre a manifestação de vontade e o respectivo instrumento, quando da produção dos atos jurídicos.

Tal como se depreende do art. 104, do Código Civil brasileiro, os atos jurídicos em sentido estrito correspondem aos atos humanos, na conformidade da ordem jurídica, constituídos pelos elementos vontade, forma e objeto. (BRASIL, 2002) A vontade humana é o elemento constitutivo fundamental do ato jurídico. (PREREIRA, 2004)

Atos jurídicos, pois, são aqueles que, ostentando relevância para o Direito, isto é, cujo objeto coincida com o suporte fático ou hipótese de incidência de alguma norma jurídica válida, estão aptos à produção de efeitos jurídicos em razão da validade da manifestação de vontade, da licitude do objeto e da pertinência jurídica da forma.

Os negócios jurídicos, como espécie do ato jurídico em sentido amplo, correspondem aos atos jurídicos cujo efeito não se encontra previsto em lei, mas é ditado pelo próprio prolator da manifestação de vontade, nos casos em que a ordem jurídica autoriza a dicção dos efeitos. 

Em regra, a forma dos atos jurídicos é livre, sendo exigida forma especial (instrumento público ou específica solenidade procedimental) apenas nas hipóteses expressamente previstas em lei, a exemplo do casamento ou dos negócios jurídicos sobre imóveis com valor superior a 30 (trinta) salários-mínimos. (BRASIL, 2002)

Não há que se confundir, portanto, o ato jurídico com o seu instrumento. O ato jurídico decorre da manifestação de vontade, a qual, em regra, pode dar-se inclusive de forma oral. O instrumento do ato jurídico, por sua vez, é o elemento material que serve de prova da realização do ato jurídico, por ter a aptidão de demonstrar a ocorrência da manifestação de vontade e do seu objeto.

Assim é que, por exemplo, a celebração de um contrato de compra e venda de coisa móvel realizada entre duas pessoas maiores e capazes ou a contratação de um trabalhador para a prestação de determinado serviço, por se enquadrarem em hipóteses de negócios jurídicos para os quais a lei não exige forma escrita, aperfeiçoam-se, do ponto de vista jurídico, com o simples encontro das manifestações de vontade (acordo verbal, costumeiramente finalizado, no mundo ocidental, com um aperto de mãos, quando praticado por pessoas presentes), sendo desnecessária, para a sua validade jurídica, a elaboração de um instrumento escrito contendo as cláusulas contratuais. O instrumento, contudo, servirá de prova da existência e do conteúdo do negócio jurídico celebrado, razão pela qual é de todo recomendável a sua elaboração, com a adoção das cautelas pertinentes à demonstração da autenticidade das assinaturas, bem como sua conservação, por todo o prazo de prescrição ou decadência do direito, ainda quando sua formalização não seja obrigatória, segundo as determinações legais.

2. O conceito tradicional de documento

A doutrina costuma conceituar "documento" como qualquer coisa que possa demonstrar a existência de um fato de forma idônea perante o juízo. (CARNELUTTI, 1957) O instrumento dos atos e negócios jurídicos, do ponto de vista do direito processual, é uma das modalidades da denominada “prova documental” a que se referem os arts. 434 a 438, do Código de Processo Civil. (BRASIL, 2015)

Documento é, pois, conceito mais amplo que o de instrumento, abrangendo não apenas as representações materiais elaboradas com o intuito de fazer prova da existência e do conteúdo dos atos e negócios jurídicos, mas, também, os elementos representativos de quaisquer fatos relevantes para o Direito. Nessa ordem de ideias, fotografias, gravações de áudio ou de vídeo, cartas, bilhetes, cheques, notas promissórias e outros títulos de crédito, escriturações contábeis, livros empresariais, artigos de jornais ou de periódicos, atas notariais, cédulas de identidade, certidões, declarações, laudos e atestados, dentre outros, constituem, igualmente, documentos.

Trata-se, contudo, o documento, a nosso ver, de conceito mais restrito que o de “prova material”, comumente utilizado no âmbito do Direito Processual Penal, o qual abrange, além dos documentos, todos os meios probatórios que, não obstante sejam aptos à demonstração de um ato ou fato, não tiveram a sua produção realizada por uma vontade humana livre e consciente, não cabendo falar, propriamente, em “autoria”, como no caso de uma gota de sangue, de um fio de cabelo, de uma impressão digital, de uma pegada, ou de outros vestígios indicativos da ocorrência de atos ou fatos que se queira demonstrar.

Nessa perspectiva estrita que aqui se sustenta, pois, os documentos, diversamente das demais provas materiais, são sempre elaborados por alguém que tem a intenção de criá-los, visando a fazer prova: a) de um negócio jurídico ou de um ato jurídico em sentido estrito (hipótese em que serão qualificados de “instrumento”); b) de um fato qualquer cuja ocorrência se pretenda demonstrar (outros documentos). Abrange, ainda, os registros formais de informações produzidos por dever legal por agentes públicos e privados, como as certidões, os atestados, os registros públicos e os livros contábeis.

É possível afirmar, assim, que, no plano estrutural, os documentos possuem: 1) um conteúdo ou objeto, indicativo de sua finalidade ou razão de ser; 2) um autor ou produtor, interessado em sua elaboração para a demonstração de um ato ou fato relevante para o Direito ou que o produz por obrigação jurídica; e 3) um suporte material, que permite a representação da informação cuja ocorrência se pretende demonstrar ou cujo registro se busca realizar para satisfazer a uma imposição legal.

3. Do documento físico ao documento eletrônico

Antes do advento dos modernos sistemas eletrônicos de informação, os registros probatórios em geral e as manifestações de vontade dos negócios jurídicos costumavam ser documentados, inclusive nos casos de instrumento público, através do suporte físico do papel, mediante a escrita do seu conteúdo em vernáculo, à mão ou por algum meio mecânico, a exemplo da marcação dos caracteres por uma máquina de datilografia, sendo finalizado com a aposição da assinatura, em tinta indelével, junto à informação da data de sua elaboração.

Com o surgimento do computador pessoal em 1975 e sua rápida popularização, a partir dos anos 1980, softwares editores de texto e impressoras matriciais, a laser e a jato de tinta, paulatinamente, substituíram a máquina de datilografar, de modo que a edição e elaboração de documentos públicos e privados passou a ser realizada com o auxílio de um computador, mas a assinatura dos documentos continuava a ser realizada à mão, através de caneta hábil ao carregamento de tinta ao suporte físico de papel.

O documento, pois, logo a partir do início da primeira revolução digital, passou a ter sua elaboração realizada quase que integralmente por meio eletrônico, através dos aplicativos editores de texto, sendo que apenas a assinatura ocorria de forma manual. Não raro, os arquivos eletrônicos que viabilizaram a edição do documento (arquivos “.doc”, extensão proprietária do aplicativo Microsoft Word, por exemplo, e correlatos), permaneciam guardados nos discos rígidos dos computadores dos autores, mas havia a necessidade de o conteúdo ser impresso em uma folha de papel para que fossem acrescentadas assinaturas manuais por parte dos agentes que anuíam com a declaração de vontade.

Incorria-se, pois, na incoerência de se elaborar um documento quase que integralmente em meio eletrônico e de se mantê-lo armazenado em meio magnético, mas ser necessário materializá-lo em meio físico (papel), através da impressão, somente para que o último ato da elaboração, a saber, a assinatura, fosse realizada, o que não permitia falar-se na existência de um documento digital, na medida em que a assinatura manual, em suporte físico de papel, fazia com que o documento, ainda que elaborado com o auxílio de um sistema eletrônico, fosse considerado um documento físico. 

Para atestar a autenticidade das assinaturas em documentos privados, o único meio então existente era o reconhecimento de firma por cartório de notas, a quem incumbe certificar, por fé pública, que a assinatura corresponde à do autor indicado no documento, seja por semelhança (correspondência da assinatura no documento privado com a do cartão de autógrafo arquivado na sede do cartório), seja por autenticidade (declaração de que o documento foi assinado pela pessoa indicada na presença do tabelião ou de seu assistente, que o identificou mediante o documento público ou outro meio válido). (BRASIL, 1994)

As modernas tecnologias da informação, contudo, tornaram possível a criação de uma infraestrutura digital capaz de viabilizar a autenticação eletrônica e automática de assinaturas de documentos eletrônicos por meio de chaves codificadas, comumente armazenadas em cartões magnéticos ou tokens de uso individual, associadas a algoritmos de criptografia. O pretenso signatário de documentos eletrônicos realizaria um cadastro prévio em um sistema de reconhecimento de assinaturas eletrônicas, sendo-lhe conferida uma chave eletrônica, de uso individual e intransferível, a ser armazenada em cartão magnético ou pendrive, complementada por uma senha criada exclusivamente pelo seu detentor, de modo a que, em sistemas eletrônicos previamente preparados e compatíveis com o sistema de reconhecimento da chave eletrônica, fosse possível uma assinatura eletrônica, autenticável, capaz de eliminar a necessidade da fase física de assinatura dos documentos.

4. O documento eletrônico no Brasil

No Brasil, em 28 de junho de 2001, foi editada a Medida Provisória n.º 2.200, a qual instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, destinada a “garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.” (BRASIL, 2001)

A norma foi reeditada na Medida Provisória n.º 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, a qual estabelece que compete ao Comitê Gestor da ICP-Brasil: a) adotar as medidas necessárias e coordenar a implantação e o funcionamento da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira; b) estabelecer a política, os critérios e as normas técnicas para o credenciamento das Autoridades Certificdoras (AC), das Autoridades de Registro (AR) e dos demais prestadores de serviço de suporte à ICP-Brasil, em todos os níveis da cadeia de certificação; c) estabelecer a política de certificação e as regras operacionais da AC Raiz; d) homologar, auditar e fiscalizar a AC Raiz e os seus prestadores de serviço; e) estabelecer diretrizes e normas técnicas para a formulação de políticas de certificados e regras operacionais das AC e das AR e definir níveis da cadeia de certificação; f) aprovar políticas de certificados, práticas de certificação e regras operacionais, credenciar e autorizar o funcionamento das AC e das AR, bem como autorizar a AC Raiz a emitir o correspondente certificado; g) identificar e avaliar as políticas de ICP externas, negociar e aprovar acordos de certificação bilateral, de certificação cruzada, regras de interoperabilidade e outras formas de cooperação internacional, certificar, quando for o caso, sua compatibilidade com a ICP-Brasil, observado o disposto em tratados, acordos ou atos internacionais; e h) atualizar, ajustar e revisar os procedimentos e as práticas estabelecidas para a ICP-Brasil, garantir sua compatibilidade e promover a atualização tecnológica do sistema e a sua conformidade com as políticas de segurança. (BRASIL, 2001)

Nos termos da referida MPV, à Autoridade Certificadora Raiz, primeira autoridade da cadeia de certificação, executora das Políticas de Certificados e normas técnicas e operacionais aprovadas pelo Comitê Gestor da ICP-Brasil, compete emitir, expedir, distribuir, revogar e gerenciar os certificados das autoridades certificadoras de nível imediatamente subsequente, gerenciar a lista de certificados emitidos, revogados e vencidos, e executar atividades de fiscalização e auditoria e dos prestadores de serviço habilitados na ICP, em conformidade com as diretrizes e normas técnicas estabelecidas pelo Comitê Gestor da ICP-Brasil, e exercer outras atribuições que lhe forem cometidas pela autoridade gestora de políticas. Não obstante, é vedado à Autoridade Certificadora Raiz emitir certificados para o usuário final. (BRASIL, 2001)

Às Autoridades Certificadoras, entidades credenciadas a emitir certificados digitais vinculando pares de chaves criptográficas ao respectivo titular, compete emitir, expedir, distribuir, revogar e gerenciar os certificados, bem como colocar à disposição dos usuários listas de certificados revogados e outras informações pertinentes e manter registro de suas operações. O par de chaves criptográficas será gerado sempre pelo próprio titular e sua chave privada de assinatura será de seu exclusivo controle, uso e conhecimento. Compete às Autoridades de Registro, entidades operacionalmente vinculadas a determinada Autoridade Certificadora, identificar e cadastrar usuários, encaminhar solicitações de certificados às Autoridades Certificadoras e manter registros de suas operações. (BRASIL, 2001)

O art. 10, da Medida Provisória n.º 2.200-2/2001, conceitua documento eletrônico como o assinado através de chave integrante da ICP-Brasil, reconhecendo a validade jurídica, para todos os efeitos, dos referidos documentos, ao estabelecer que:

“Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória. § 1º As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 – Código Civil. § 2º O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento. Art. 11. A utilização de documento eletrônico para fins tributários atenderá, ainda, ao disposto no art. 100 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.” (BRASIL, 2001)

Portanto, a partir da edição do referido ato normativo, integra-se, formalmente, ao direito brasileiro, o conceito de documento eletrônico, entendido como o documento produzido completamente em meio eletrônico, incluindo a fase de assinatura. Com a assinatura eletrônica autenticável através dos protocolos técnicos editados pela ICP-Brasil, torna-se desnecessário o suporte físico do papel para a elaboração de qualquer documento em território nacional.

5. Diferença entre documento eletrônico e representação visual de seu conteúdo

O documento eletrônico não se confunde com a representação visual do seu conteúdo, seja na tela de um computador, seja em papel, após o recurso a algum mecanismo de impressão. O documento eletrônico é um conjunto de dados digitais, armazenáveis em meio magnético, óptico ou similar, que abrange o seu conteúdo, a sua assinatura e eventuais metadados (assunto, classe, data de produção, destinação prevista, gênero, prazo de guarda etc.), cuja elaboração passa pela adoção de algoritmos de criptografia e chaves eletrônicas para controle e autenticação, de uso individual do subscritor do documento.

É claro que, para a leitura do conteúdo de um documento eletrônico, é necessária uma tecnologia de informática que permita, ao menos, a visualização do seu objeto – normalmente, um texto editado no idioma nativo do autor – na tela de um dispositivo eletrônico, que, usualmente, será um computador de tipo desktop ou notebook ou um dispositivo móvel com arquitetura computacional, como um smartphone ou tablet. Contudo, para a compreensão de sua natureza jurídica, é importante marcar a diferença entre o documento eletrônico e sua representação visual.

O documento eletrônico, em si, é o conjunto de dados estruturados em meio digital, o qual, em essência, é invisível aos olhos humanos, pois corresponde a um conjunto lógico de sinais eletrônicos representados, no nível mais baixo da implementação do software, como uma vasta cadeia binária, composta exclusivamente por zeros e uns. O documento eletrônico, seja qual for o seu conteúdo, é traduzido, ao nível da linguagem de máquina, em uma grande cadeia de caracteres, formada exclusivamente pelos elementos 0 ou 1, pois essa é a técnica adotada pelos sistemas digitais e dispositivos de informática contemporâneos, já que, no plano subsequente das placas eletrônicas, tudo se resume à existência ou não de impulsos elétricos ou à passagem de corrente elétrica de carga positiva ou negativa (como + 5 volts ou - 5 volts, por exemplo) pelos transistores que implementam portas lógicas.

O que se vê na tela do computador é apenas a tradução dessa grande cadeia zeros e uns em caracteres alfanuméricos e espaços em branco que formam palavras, frases, parágrafos e textos completos, ou, ainda, pontos coloridos minúsculos integrantes de alguma imagem ou gravação de áudio ou de vídeo, conforme editados pelo usuário, e que são representados no monitor através do acionamento de leds no nível dos pixels. Tudo o que se visualiza na tela do computador é, pois, “virtual”, no sentido de que não existe, em verdade, mas corresponde apenas à ilusão causada pelo sistema computacional, que associa uma longa cadeia de zeros e uns a informações representáveis visualmente, na forma minúsculos pontos coloridos acionados por eletricidade na tela de um dispositivo eletrônico, e, a partir daí, imprimíveis em uma folha de papel, com o auxílio de uma impressora.

O termo “bit”, que corresponde à unidade da cadeia de caracteres que codifica a informação no nível mais baixo de funcionamento de um sistema computacional, equivalente ao processamento no âmbito das placas eletrônicas, é, precisamente, a abreviação da expressão inglesa binary digit ou “dígito binário”, a saber, um dígito pertencente a um conjunto composto por apenas dois elementos (0 ou 1). Todo dado processável em um sistema computacional – incluindo qualquer elemento de texto, áudio ou vídeo, bem como chaves criptográficas e códigos gerados por algoritmos de assinaturas digitais – é convertido em uma longa sequência de “bits”, que são armazenados em dispositivos magnéticos – como um Hard Disk (HD), um pendrive ou um Solid State Drive (SSD) – ou ópticos, como um CD-ROM ou um DVD-ROM. É a cadeia de “bits” gerada que constitui, em essência, o documento eletrônico, o qual, por isso mesmo, só pode ser manipulado em um dispositivo eletrônico compatível com o formato lógico de sua produção.

6. Diferença entre documento eletrônico e documento físico digitalizado

A digitalização (através de fotografia digital ou de um aparelho de scanner, por exemplo) de um documento físico, não o transforma em um documento eletrônico, pelo simples fato de que o documento original não foi gerado com o uso da tecnologia de assinaturas digitais. O documento original é físico e a digitalização é um processo que permite, tão somente, o armazenamento digital da imagem do documento. Cuida-se, pois, apenas, da guarda em meio eletrônico da imagem de um documento físico, razão pela qual, em regra, deve ser mantido o documento físico original para o caso de haver impugnação quanto ao conteúdo do documento digitalizado.

Ainda que determinadas leis ou atos normativos atribuam ao documento digitalizado valor probatório equivalente ao do documento físico original, como no caso das regras atualmente presentes no Código de Processo Civil, que atribuem ao documento digitalizado, salvo alegação fundamentada de adulteração, o mesmo valor jurídico do documento original, isso não significa que o documento digitalizado se converteu em documento eletrônico, pois não se trata de documento nato-digital, dado que sua produção, que se aperfeiçoa com a assinatura, ocorreu de forma manual e em suporte físico de papel, não se tendo construído por meio de assinatura eletrônica, com a formatação original do documento em meio integralmente eletrônico, que viabiliza a formação de um documento nato-digital.

O documento digitalizado não se confunde, em hipótese alguma, com o documento eletrônico. Documento eletrônico é, exclusivamente, o documento nato-digital, isto é, o produzido de forma inteiramente eletrônica, aperfeiçoado com a aposição de assinatura digital viabilizada por sistema eletrônico que assegure a autenticidade mediante controle criptográfico e chave de segurança individual. Documento digitalizado, por sua vez, é o documento físico, elaborado em suporte de papel e assinado manualmente, o qual, contudo, foi submetido a processo de conversão de sua imagem em formato digital, o que não o converte em um documento digital, mas apenas viabiliza a preservação da imagem do documento físico em um suporte eletrônico, em meio magnético, óptico ou equivalente.

6.1. Normas sobre a digitalização de documentos públicos e privados

A Lei n.º 12.682, de 9 de julho de 2012, dispôs sobre a elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos. Nos termos da lei, entende-se por digitalização a conversão da fiel imagem de um documento para código digital. (BRASIL, 2012)

Em 2019, a Lei n.º 13.874, “declaração de direitos de liberdade econômica”, incluiu o art. 2º-A e alterou a redação do art. 3º, da Lei n.º 12.682/2012, modificou substancialmente o regramento da digitalização de documentos públicos. A partir da mencionada lei, passou a ser autorizado o armazenamento, em meio eletrônico, óptico ou equivalente, de documentos públicos ou privados, compostos por dados ou por imagens, observado o disposto nesta Lei, nas legislações específicas e no regulamento. O regulamento referido mostrou ser o Decreto n.º 10.278, de 18 de março de 2020, o qual exige, como regra, que o documento digitalizado destinado a se equiparar a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato perante pessoa jurídica de direito público interno deverá: a) ser assinado digitalmente com certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, de modo a garantir a autoria da digitalização e a integridade do documento e de seus metadados; b) seguir os padrões técnicos mínimos previstos no Anexo I; e c) conter, no mínimo, os metadados especificados no Anexo II. (BRASIL, 2019b)

De acordo com a Lei n.º 13.874 de 2019, após a digitalização, constatada a integridade do documento digital nos termos estabelecidos no regulamento, o original poderá ser destruído, ressalvados os documentos de valor histórico, cuja preservação observará o disposto na legislação específica. O documento digital e a sua reprodução, em qualquer meio, realizada de acordo com o disposto na referida lei e na legislação específica, terão o mesmo valor probatório do documento original, para todos os fins de direito, inclusive para atender ao poder fiscalizatório do Estado. Decorridos os respectivos prazos de decadência ou de prescrição, os documentos armazenados em meio eletrônico, óptico ou equivalente poderão ser eliminados.

Os documentos digitalizados conforme o disposto na referida lei terão o mesmo efeito jurídico conferido aos documentos microfilmados, nos termos da Lei nº 5.433, de 8 de maio de 1968 e de regulamentação posterior. Ato do Secretário de Governo Digital da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia estabelecerá os documentos cuja reprodução conterá código de autenticação verificável. Ato do Conselho Monetário Nacional disporá sobre os documentos referentes a operações e transações realizadas no sistema financeiro nacional.

Nos termos do art. 2º-A, § 7º e 8º, da Lei n.º 12.682/2012, com a redação conferida pela Lei n.º 13.874/2019, é lícita a reprodução de documento digital, em papel ou em qualquer outro meio físico, que contiver mecanismo de verificação de integridade e autenticidade, na maneira e com a técnica definidas pelo mercado, e cabe ao particular o ônus de demonstrar integralmente a presença de tais requisitos. No caso dos documentos públicos, para a garantia de preservação da integridade, da autenticidade e da confidencialidade, será usada certificação digital no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).     

7. A Lei n.º 14.063/2020 e as novas normas sobre assinaturas eletrônicas

A recente Lei n.º 14.063, de 23 de setembro de 2020, regulamentada pelo Decreto n.º 10.543, de 13 de novembro de 2020, trouxe novas regras sobre assinaturas eletrônicas, impactando o regime jurídico dos documentos eletrônicos no direito brasileiro. A lei reconhece e formaliza procedimentos já adotados na prática por entidades públicas e privadas, mas também apresenta novos regramentos, versa sobre a assinatura eletrônica de atos específicos em matéria de saúde e dispõe sobre atos praticados em meio eletrônico durante o período da pandemia de Covid-19. Versa, também, sobre a licença de código aberto para os sistemas de informação desenvolvidos exclusivamente pelos órgãos e entidades da Administração Pública.

Dentre as inovações trazidas pela lei, destaca-se o reconhecimento de 3 (três) categorias de assinaturas eletrônicas, classificadas em: 1) “assinatura eletrônica simples”: a que permite identificar o seu signatário e que anexa ou associa dados a outros dados em formato eletrônico do signatário; 2) “assinatura eletrônica avançada”: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características: a) está associada ao signatário de maneira unívoca; b) utiliza dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; c) está relacionada aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável; e 3 ) “assinatura eletrônica qualificada”: a que utiliza certificado digital, nos termos do § 1º do art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2, de 24 de agosto de 2001. 

Os 3 (três) tipos de assinatura caracterizam o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular e a assinatura eletrônica qualificada é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos. A lei prevê que devem ser asseguradas formas de revogação ou de cancelamento definitivo do meio utilizado para as assinaturas eletrônicas, sobretudo em casos de comprometimento de sua segurança ou de vazamento de dados.

Portanto, passaram a ser formalmente reconhecidas assinaturas eletrônicas emitidas em padrões diversos dos emitidos pelas autoridades certificadoras integrantes do ICP-Brasil. Nesse sentido, a lei alterou a Medida Provisória n.º 2.200-2, de 2001, para fazer constar que, no processo de cadastramento de usuários para fins de emissão de certificados digitais, a identificação não mais precisa ser feita presencialmente, mediante comparecimento pessoal do usuário, sendo admitidas, também, outra forma que garanta nível de segurança equivalente, observadas as normas técnicas da ICP-Brasil. (BRASIL, 2020b)

Os titulares de Poder ou órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo editarão atos normativos que estabelecerão o nível mínimo exigido para a assinatura eletrônica em documentos e em interações com o ente público. O ato poderá aceitar a assinatura eletrônica simples nas interações com ente público de menor impacto e que não envolvam informações protegidas por grau de sigilo. Poderá ser exigida a assinatura eletrônica avançada em lugar da assinatura eletrônica simples e no registro de atos perante as juntas comerciais.  A assinatura eletrônica qualificada será admitida em qualquer interação eletrônica com ente público, independentemente de cadastramento prévio.

É obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada: a) nos atos assinados por Chefes de Poder, Ministros de Estado ou por titulares de Poder ou de órgão constitucionalmente autônomo de ente federativo; b) nas emissões de notas fiscais eletrônicas, com exceção daquelas cujos emitentes sejam pessoas físicas ou Microempreendedores Individuais (MEIs), situações em que o uso torna-se facultativo; c) nos atos de transferência e de registro de bens imóveis, ressalvados os registros em juntas comerciais; e d) nas demais hipóteses previstas em lei. 

8. Aplicações dos documentos eletrônicos

No Brasil, a tecnologia de assinaturas eletrônicas propiciou um rápido desenvolvimento de aplicações voltadas ao processamento eletrônico de documentos, viabilizando a informatização de procedimentos e a edição de documentos integralmente em meio digital nos setores público e privado.

Após a edição, em 2001, da Medida Provisória que criou a ICP-Brasil, a Lei n.º 11.419, de 2006, alterou o Código de Processo Civil de 1973 para dispor sobre a informatização do processo judicial. Em 2015, ao tempo de publicação do novo Código de Processo Civil, atualmente vigente, o processo judicial eletrônico já era uma realidade em todo o Brasil, tendo sido implementado com amplo sucesso em todos os Estados, e sendo o único meio de tramitação dos processos judiciais em muitos juízos e tribunais. O novo CPC, já editado no âmbito do processo judicial eletrônico, trouxe novas regras que ampliaram o uso da tecnologia na tramitação dos processos judiciais.

O processo administrativo também foi impactado pelos documentos digitais. O Decreto n.º 8.539, de 8 de outubro de 2015, regulamentou o uso do meio eletrônico para a realização do processo administrativo no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.  Conceitua documento como toda unidade de registro de informações, independentemente do formato, do suporte ou da natureza, e define “documento digital” como um gênero que abrange o documento nato-digital e o documento digitalizado.  Nos termos do Decreto, documento digital é a “informação registrada, codificada em dígitos binários, acessível e interpretável por meio de sistema computacional, podendo ser: a) documento nato-digital – documento criado originariamente em meio eletrônico; ou b) documento digitalizado – documento obtido a partir da conversão de um documento não digital, gerando uma fiel representação em código digital”. (BRASIL, 2015) A norma define processo administrativo eletrônico como aquele em que os atos processuais são registrados e disponibilizados em meio eletrônico.

Outra importante aplicação dos sistemas de assinaturas digitais que viabilizaram a adoção dos documentos eletrônicos foi a recente instituição do sistema nacional de registro eletrônico de imóveis. O registro de imóveis corresponde à transcrição das escrituras públicas dos negócios jurídicos relativos a imóveis e, no Brasil, é indispensável para a aquisição da propriedade imóvel. É atribuição exclusiva dos Cartórios de Registro de Imóveis, consoante art. 1º, § 1º, IV, c/c art. 167, da Lei n.º 6.015/73. (BRASIL, 1973)

Em 11 de julho de 2017, a Lei n.º 13.465, por seu art. 76, instituiu o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), estabelecendo que será implementado e operado, em âmbito nacional, pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR). Em 19 de dezembro de 2019, a Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou o Provimento n.º 89/2019, regulamentando o disposto na Lei n.º 13.465/2017 acerca do registro eletrônico de imóveis. O provimento criou numeração unificada das matrículas imobiliárias em todo o território nacional, dispôs sobre o repositório eletrônico dos atos registrais, os serviços de expedições de certidões e informações, em formato eletrônico, o acesso às informações pelo Poder Público e as diretrizes para a criação do estatuto do ONR.  (BRASIL, 2019a)

Por fim, a prática de atos notariais por meio eletrônico também foi admitida, recentemente, nos termos do Provimento n.º 100, de 26 de maio de 2020, da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, que os define como o conjunto de metadados, gravações de declarações de anuência das partes por videoconferência notarial e documento eletrônico, correspondentes a um ato notarial. O provimento estabelece normas gerais sobre a prática de atos notariais eletrônicos em todos os tabelionatos de notas do País, prevê atribuições dos tabeliães de notas relativamente à manipulação de documentos digitais, e introduz, dentre outros, os seguintes conceitos: a) assinatura eletrônica notarizada: qualquer forma de verificação de autoria, integridade e autenticidade de um documento eletrônico realizada por um notário, atribuindo fé pública; b) certificado digital notarizado: identidade digital de uma pessoa física ou jurídica, identificada presencialmente por um notário a quem se atribui fé pública; c) assinatura digital: resumo matemático computacionalmente calculado a partir do uso de chave privada e que pode ser verificado com o uso de chave pública, cujo certificado seja conforme a Medida Provisória n. 2.200-2/2001 ou qualquer outra tecnologia autorizada pela lei. (BRASIL, 2020a)

9. Características dos documentos eletrônicos

De tudo quanto foi até aqui exposto, é possível elencar determinadas características dos documentos eletrônicos que os diferenciam dos documentos físicos ou tradicionais, propiciando importantes conclusões para o Direito.

Em primeiro lugar, um documento eletrônico só é original no plano eletrônico. Uma página de papel com o conteúdo impresso de um documento eletrônico, ainda que com a indicação de algum link, código de barras, QR code ou número gerado pelo sistema que permita a verificação da autenticidade da assinatura eletrônica, não corresponde, em si, ao documento eletrônico original, mas, tão somente, a uma representação visual do seu conteúdo. Fazendo-se uma analogia com os documentos físicos, tradicionais, poder-se-ia afirmar que uma folha de papel impressa com o conteúdo do documento eletrônico seria, no máximo, o equivalente a uma “cópia” do original. Note-se, contudo, que até mesmo essa afirmação é tecnicamente imprecisa, pois, a rigor, não se trata de uma cópia do documento eletrônico, mas da mera representação visual do seu conteúdo em uma folha de papel, obtida mediante o uso de uma tecnologia de impressão.

O que precisa ficar claro para os operadores do Direito é que o documento eletrônico não é o mesmo que sua representação visual (seja na tela de um computador, seja, muito menos, em uma folha impressa de papel), mas o conjunto lógico de “bits” (cadeia de caracteres composta exclusivamente pelos elementos 0 ou 1, que codifica as informações que compõem o documento), de modo que, por consectário lógico, não há como visualizar o original fora de um sistema eletrônico capaz de traduzir a referida codificação. A versão digital visível, apresentada na janela do aplicativo no qual o documento foi editado ou convertida em algum outro formato de arquivo (como um arquivo de texto, um arquivo de imagem ou um arquivo PDF) ou, ainda, um folha de papel impressa com o conteúdo do documento e a indicação de que foi assinado eletronicamente, corresponde apenas a uma representação visual do conteúdo do documento.

Por conseguinte, tratar a representação visual impressa como uma “cópia” do documento eletrônico é uma incorreção de ordem técnica, pois se está diante de realidades totalmente distintas. Nem mesmo quando a representação visual seja mantida no plano digital, como nos casos da inclusão do conteúdo de um documento eletrônico em um arquivo de imagem via print de tela ou em um arquivo de formato PDF, está-se, propriamente, a produzir uma “cópia” do documento eletrônico, pois os “bits” que formam o documento eletrônico não serão os mesmos “bits” que formam o arquivo PDF ou de imagem, dado que a estrutura de organização dos dígitos binários no documento eletrônico original decorre do formato de arquivo criado pelo aplicativo no qual foi editado o documento eletrônico e processada a assinatura digital.

Um arquivo de imagem decorrente de um print de tela, um arquivo digital em formato PDF ou uma folha de papel com o conteúdo impresso do documento eletrônico, portanto, do ponto de vista jurídico, não são o documento eletrônico ou sequer cópia dele, mas, ao revés, documentos (físicos ou eletrônicos) autônomos, que, não obstante, servem como indício da existência de um documento eletrônico com aquele teor. Constituem mero indício, e não prova indireta, porque, a rigor, tais imagens representativas do conteúdo do documento eletrônico poderiam constituir uma contrafação. Somente através do aplicativo no qual foi produzido o documento eletrônico ou de aplicativos compatíveis com o referido formato de arquivo, e preparados para o processamento do referido tipo de documento, é que se pode provar a existência do documento eletrônico.

Em segundo lugar, ressalvadas as hipóteses em que o documento seja assinado eletronicamente na presença do tabelião, somente é possível aferir a autenticidade de um documento eletrônico eletronicamente. Não há como se proceder ao reconhecimento de firma de uma assinatura digital, em cartório, da maneira tradicional, através de uma página de papel com o conteúdo impresso de um documento digital, na medida em que a verificação da autenticidade de um documento, quando efetuada em momento posterior ao da aposição da assinatura, é realizada automaticamente pelo próprio sistema eletrônico, através do algoritmo específico que controla a emissão de assinaturas digitais e que se encontra integrado ao aplicativo no qual o documento nato-digital foi elaborado.

Por essa razão, em princípio, não faz muito sentido levar uma folha de papel com o conteúdo impresso de um documento eletrônico para que um tabelião certifique por fé pública que o sistema eletrônico declarou ser a assinatura autêntica, pois, nesse caso, quem está atestando a autenticidade é o algoritmo do sistema de assinaturas digitais, e não o tabelião, que estaria somente a declarar que obteve do sistema a referida informação. Como os sistemas de assinaturas eletrônicas são construídos de modo a que qualquer um possa, facilmente, conferir a autenticidade do documento através do código gerado no momento da assinatura digital, em tese, é desnecessária a intervenção de qualquer agente dotado de fé pública apenas para declarar a referida constatação.

Porém, uma vez que os próprios algoritmos dos sistemas de construção de documentos eletrônicos, integrados por subsistemas de assinaturas digitais, podem ser objeto de questionamento, ou, ainda, outras dúvidas podem surgir acerca da autenticidade de documentos eletrônicos, decorrentes de eventuais fragilidades dos sistemas relativamente ao uso dos certificados e chaves individuais de assinatura digital, o Provimento n.º 100/2020 da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ reconheceu a atribuição do tabelião de notas para: a) a materialização, a desmaterialização, a autenticação e a verificação da autoria de documento eletrônico; b) autenticar a cópia em papel de documento original digitalizado e autenticado eletronicamente perante outro notário; c) reconhecer as assinaturas eletrônicas apostas em documentos digitais; e d) realizar o reconhecimento da firma como autêntica no documento físico, devendo ser confirmadas, por videoconferência, a identidade, a capacidade daquele que assinou e a autoria da assinatura a ser reconhecida. (BRASIL, 2020)

Em terceiro lugar, não existe cópia eletrônica de documento eletrônico, mas apenas novas instâncias do documento original. Uma duplicação eletrônica do documento eletrônico original, como, por exemplo, a que se obtém a partir da utilização dos comandos “CTRL + C” e “CTRL + V” do teclado de um computador, quando selecionado um documento eletrônico no explorador de arquivos de um sistema operacional, não constitui, tecnicamente, uma “cópia” do documento firmado por assinatura digital, mas, ao revés, a criação de uma nova via original. Isso porque, diferentemente dos documentos físicos, cujo original é uma instância física, que somente poderia ser reproduzida com novas assinaturas manuais em outros suportes físicos que contivessem idêntico conteúdo, formando, assim, novas vias originais do mesmo documento, no caso dos documentos eletrônicos, o original é apenas um conjunto de “bits” estruturado de forma específica segundo a lógica de programação do sistema computacional no qual foi editado, o qual contém a representação matemática da assinatura digital realizada no momento da formação do documento. Como não há, em princípio, qualquer diferenciação entre os “bits” do documento eletrônico original e os de sua réplica eletrônica, toda cópia desse conjunto de “bits” é uma replicação do próprio original eletrônico.

Toda via eletrônica de um documento eletrônico é, pois, igualmente, uma via original, sendo possível, através dos comandos “copiar” e “colar” dos computadores contemporâneos, produzir inúmeras vias originais de um documento eletrônico. Cada uma das vias geradas terá valor jurídico idêntico ao do documento original, mas não porque sejam cópias autênticas do original, mas, tão somente, porque são, todas elas, novas vias originais, visto que se trata de documento eletrônico e não físico. A adoção dos mecanismos de cópia eletrônica do documento eletrônico gera uma nova instância eletrônica do documento eletrônico inicial, razão pela qual o que se produz não é uma “cópia”, mas uma nova via original do documento eletrônico.

Em quarto lugar, não há que se falar, pois, em “autenticação de cópia” de documento nato-digital, uma vez que as diferentes instâncias digitais de um documento eletrônico são todas vias originais do documento e a representação visual do conteúdo, em meio físico (papel impresso) ou digital (arquivos PDF ou de imagem) não se confunde com o documento eletrônico ou com sua cópia. O conteúdo impresso de um documento eletrônico não constitui, a rigor, uma “cópia” que possa ser autenticada por tabelião ou outro agente dotado de fé pública, pois uma declaração de sua correspondência com o original pressupõe o acesso ao sistema eletrônico no qual o documento eletrônico foi editado, o que já corresponde ao acesso ao documento original, tornando, em regra, desnecessária a declaração de correspondência, na medida me que o próprio original está à disposição no sistema eletrônico.

Via de regra, os sistemas de elaboração de documentos eletrônicos têm acesso universal via Internet e permitem a qualquer indivíduo a confirmação da existência e autenticidade dos documentos neles gerados. Na hipótese teórica de um o sistema de criação de documentos eletrônicos estar acessível ao tabelião, mas não estar ao alcance da pessoa a quem se quer provar a existência e o conteúdo do documento eletrônico, o instrumento cabível, a nosso ver, seria uma ata notarial, na qual se atestaria que o conteúdo visualizado no papel impresso apresentado ao tabelião é equivalente ao da representação visual do documento eletrônico no sistema específico acessado.

Nesse sentido, repise-se que o Provimento n.º 100/2020 da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ reconheceu a atribuição do tabelião de notas para “autenticar a cópia em papel de documento original digitalizado e autenticado eletronicamente perante outro notário”, o que não se confunde com declarar a correspondência de um conteúdo impresso em folha de papel com o conteúdo de um documento eletrônico ao qual o tabelião teve acesso. Tal medida, contudo, não nos parece vedada, sendo admissível pela via da ata notarial, a qual, contudo, teria de qualificar e identificar o sistema eletrônico no qual o documento foi emitido e assinado digitalmente, de modo a estabelecer a vinculação entre a representação visual impressa e o documento eletrônico original. 

Conclusão

Os documentos eletrônicos foram reconhecidos no direito brasileiro pela Medida Provisória n.º 2.200, de 2001, que instituiu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. A recente Lei n.º 14.063, de 23 de setembro de 2020, regulamentada pelo Decreto n.º 10.543, de 13 de novembro de 2020, trouxe novas regras, reconhecendo a validade jurídica de outras formas de assinaturas eletrônicas, ainda que não implementem os protocolos do ICP-Brasil, mas conferindo o grau máximo de confiabilidade à assinatura eletrônica qualificada, que é a que utiliza certificado digital construído segundo os critérios da ICP-Brasil.

Não há que se confundir o documento eletrônico com a representação visual de seu conteúdo, seja em meio digital, seja em meio físico, como o de um papel que contenha, de forma impressa, o conteúdo do documento eletrônico. O documento eletrônico é um conjunto de dígitos binários estruturados de forma lógica segundo critérios específicos do sistema eletrônico que o criou, constituindo, portanto, uma realidade imaterial.

Também não se confunde o documento eletrônico com a versão digitalizada de um documento físico, na medida em que a digitalização corresponde à mera guarda, em meio digital, da imagem de um documento físico. O documento digitalizado é um arquivo eletrônico autônomo que apresenta a imagem de um documento físico, não um documento físico que foi convertido em digital, pois a formação do documento, incluindo a fase fundamental do registro da manifestação de vontade pela aposição da assinatura, ocorreu não em meio eletrônico, mas em meio físico. Como a digitalização, em princípio, não comporta qualquer forma de ratificação das assinaturas do documento físico, através de assinaturas digitais, por parte dos autores do documento físico, não há que se falar, como regra geral, em conversão de documento físico em digital através do procedimento de digitalização. 

A Lei n.º 12.682/2012, com as alterações realizadas pela Lei n.º 13.874/2019, versou sobre a digitalização de documentos no âmbito público e privado e permitiu a digitalização de documentos, por parte da Administração Pública, conferindo aos documentos digitalizados idêntico valor jurídico que o do documento físico original, desde que atendidos determinados critérios, sendo permitido, inclusive, em alguns casos, o descarte dos originais físicos.

O reconhecimento da validade jurídica dos documentos eletrônicos no Brasil permitiu diversas aplicações, como o processo judicial eletrônico, o processo administrativo eletrônico federal, o registro eletrônico de imóveis e a prática de atos notariais em meio eletrônico. Outras inovações similares também têm sido sucessivamente praticadas, a exemplo da emissão de documentos públicos em geral por meio eletrônico, como no caso do Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo em Meio Digital – CRLV-e, que, foi admitido por meio da Resolução do Conselho Nacional de Trânsito n.º 809, de 15 de dezembro de 2020.

Não resta dúvida de que os documentos eletrônicos constituem um passo sem volta no processo de modernização das relações sociais, tudo levando a crer que sua utilização será cada vez mais crescente no Brasil e no mundo, dada a praticidade, celeridade e economicidade que propiciam nos diferentes campos da atuação humana. Em função da pandemia de Covid-19 e da necessidade de manutenção das atividades econômicas em meio a medidas de distanciamento social, sua adoção foi potencializada e acelerada em muitos campos do setor público e privado. O impacto que essa realidade produz no sistema jurídico é significativo, na medida em que uma nova teoria jurídica, acompanhada de novas normas que solucionem questões associadas à manipulação dos documentos, por certo, se mostrará necessária para o adequado tratamento dos fatos jurídicos à luz dos novos meios probatórios.

Referências

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BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento n.º 100 de 26 de maio de 2020a.  Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3334. Acesso em 26 mar. 2022.

BRASIL. Decreto n.º 8.539, de 8 de outubro de 2015a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/d8539.htm. Acesso em: 26 mar. 2022.

BRASIL. Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015consolidado.htm. Acesso em: 26 mar. 2022.

BRASIL. Lei n.º 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm. Acesso em: 26 mar. 2022.

BRASIL. Lei n.º 10.404, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 26 mar. 2022.

BRASIL. Lei n.º 11.419, de 19 de dezembro de 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11419.htm. Acesso em: 26 mar. 2022.

BRASIL. Lei n.º 12.682, de 9 de julho de 2012.Dispõe sobre a elaboração e o arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12682.htm. Acesso em: 26 mar. 2022.

BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015b. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 26 mar. 2022.

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quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A Lei n.º 13.655/2018 e as alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: o novo regime de motivação das decisões judiciais e outras questões processuais nas esferas judicial e administrativa – percepções iniciais

por Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Resumo: O texto examina as inovações trazidas pela Lei n.º 13.655/2018 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que estabeleceram deveres adicionais de fundamentação e conteúdo para decisões jurídicas nos âmbitos administrativo e judicial que fixem a interpretação de valores abstratos ou conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, notadamente no campo do direito público. É efetuada uma análise geral dos dispositivos, com indicação das disposições que foram objeto de veto e da aplicação que se pode esperar para os dispositivos à luz dos valores e demais previsões do ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Fundamentação das decisões judiciais e administrativas. Interpretação jurídica. Conceitos jurídicos abertos ou indeterminados. Ponderação de princípios.

Abstract: The text examines the innovations introduced by Law no. 13,655/2018 to the Law of Introduction to the Norms of Brazilian Law, which established additional duties of rationale and content for legal decisions in the administrative and judicial spheres that fix the interpretation of abstract or open or indeterminate legal concepts, notably in the field of public law. A general analysis of the devices is carried out, indicating the provisions that have been vetoed and the application that can be expected for the devices in the light of values and other provisions of the legal order.

Keywords: Law of Introduction to the Norms of Brazilian Law. Rationale of judicial and administrative decisions. Legal interpretation. Open or indeterminate legal concepts. Weighting of principles.

Sumário: Introdução. 1. Motivação das decisões judiciais, administrativas e de controle financeiro e orçamentário na aplicação de normas jurídicas de conteúdo aberto ou indeterminado. 2. Necessidade de indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas da decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. 3. Dever de consideração dos obstáculos e dificuldades reais do administrador público na interpretação de normas administrativas e regras para a aplicação de sanções a agentes públicos. 4. Dever de criação de regime de transição em decisões que fixem nova interpretação sobre norma de conteúdo indeterminado . 5. Irretroatividade de nova interpretação de cláusula geral para efeito de invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa. 6. Previsão vetada: ação declaratória da validade de ato público, de rito especial, com sentença de eficácia erga omnes. 7. Possibilidade de celebração de compromisso administrativo com o fito de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público. 8. Possibilidade de fixação de indenização por dano processual no bojo da própria decisão do processo administrativo ou judicial. 9. Responsabilidade pessoal do agente público por decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. 10. Possibilidade de realização de consulta pública para a edição de atos normativos pela Administração Pública no âmbito dos três Poderes. 11. Estímulo à edição de súmulas administrativas, regulamentos, respostas a consultas e demais atos tendentes a reforçar a segurança jurídica. Conclusão. Referências.


Introdução

A Lei n.º 13.655, de 25 de abril de 2018, incluiu 10 (dez) novos artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942, tendo por escopo introduzir “disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”.

Dentre as inovações do novel diploma, pode-se destacar a instituição de normas expressas regulando a motivação das decisões jurídicas nas esferas administrativa, controladora e judicial quando da aplicação de normas de conteúdo aberto ou indeterminado, e, ainda, a interpretação de normas relativas à administração pública, as decisões interpretativas, as decisões que impliquem invalidação de atos, contratos, ajustes ou processos administrativos, a celebração de compromisso para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, a fixação de compensação por dano processual, o estabelecimento da responsabilidade pessoal do agente público em caso de dolo ou erro grosseiro, dentre outras medidas tendentes a reforçar a segurança jurídica na criação e aplicação do direito público.

A norma ostenta evidente importância no cenário jurídico, com impacto significativo na atuação dos agentes públicos em geral, notadamente quanto à aplicação do direito público, na medida em que instituiu novos critérios de validade para a manifestação das diferentes autoridades, impondo novo ônus argumentativo para a densificação de valores jurídicos abstratos ou normas jurídicas de conteúdo indeterminado, cujo significado e efeitos são definidos à luz das circunstâncias do caso concreto.

O presente texto tem por objetivo o exame inicial das novas regras, buscando-se identificar as alterações que introduziu na ordem jurídica e a mudança de postura que se exige dos órgãos e agentes públicos no desempenho de suas atribuições.

1. Motivação das decisões judiciais, administrativas e de controle financeiro e orçamentário na aplicação de normas jurídicas de conteúdo aberto ou indeterminado  

O novo art. 20, da Lei de Introdução, passa a dispor que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”, asseverando, ainda, que “A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.” (BRASIL, 2018, p. 1)

Significa dizer que um novo requisito de validade para a motivação das decisões jurídicas que versem sobre normas de conteúdo aberto ou indeterminado é a “consideração das consequências práticas da decisão”, sendo recomendável aos juízes, membros de tribunais e demais agentes públicos que, na aplicação de princípios jurídicos ou valores do sistema normativo, façam constar expressamente da fundamentação a referência ao novo dispositivo legal da Lei de Introdução, efetuando o devido cotejo entre a solução proposta e as “consequências práticas da decisão”. Por consequências “práticas” devem ser compreendidas não apenas as consequências jurídicas, mas, também, as de ordem econômica, política e social, analisando-se os efeitos da decisão administrativa ou judicial em sentido amplo.

Evidentemente, as consequências que interessam ao legislador, ao ponto de interferirem na validade da decisão, inclusive judicial, não são, prioritariamente, os efeitos da decisão no plano fático individual, cuja parte interessada se encontra representada no processo, participa do embate dialógico do qual resulta a decisão e tem legitimidade para impugná-la na via recursal, mas, sobretudo, sua repercussão no âmbito coletivo, notadamente o impacto financeiro e orçamentário de decisões judiciais que interfiram na execução de políticas públicas, a exemplo da judicialização da saúde (v. g., condenação do Estado na obrigação de fazer consistente em realizar determinados procedimentos médicos ou no fornecimento de medicamentos de alto custo).

Ao que nos parece, a preocupação maior do legislador, ao exigir a consideração das consequências “práticas” da decisão funda-se, precisamente, em razões de ordem financeira e orçamentária, tendo em vista a aprovação recente, pela Emenda Constitucional n.º 95 (PEC do Teto dos Gastos Públicos), da política limitação de despesas nos órgãos e entidades da administração direta e indireta, nos três Poderes e nos três níveis da federação.

Nos termos do parágrafo único, quando se tratar de decisão que importe em invalidação de norma, ajuste, processo, ato ou contrato administrativo, deve o julgador, ainda, fazer referência explícita à “necessidade e adequação” da medida, cabendo efetuar um cotejo em face das “possíveis alternativas” à anulação ou ao reconhecimento da nulidade. Novamente, doravante, é de bom alvitre que o juiz ou administrador público faça menção expressa na fundamentação às referidas expressões e ao dispositivo legal em apreço, comparando os cenários nos quais é mantido ou excluído do ordenamento o ato viciado. 

Os dispositivos consagram no plano do direito positivo a técnica interpretativa da ponderação de interesses, defendida de há muito por Dworkin e Alexy e já trabalhada, para as decisões judiciais, no texto do Novo Código de Processo Civil. (MARMELSTEIN, 2018, p. 373-390) Nos termos do art. 489, § 1º, do NCPC, “Não se considera fundamentada” qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: a) se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; b) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; c) invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; d) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; e) se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; f) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (BRASIL, 2015, p. 1)

No caso da previsão inserida no texto da LINDB, a norma se destina às decisões nas esferas “administrativa, controladora e judicial”. Por esfera “controladora”, entendemos que o legislador quis se referir ao controle administrativo, financeiro e orçamentário efetuado pelo Congresso Nacional, pelos Tribunais de Contas e pelos órgãos de controle interno de cada Poder, nos termos do art. 70, da CF/88, os quais, a nosso ver, integram o gênero mais amplo da atividade “administrativa”, pelo que sua menção se revelaria atécnica, porquanto, a rigor, desnecessária. (BRASIL, 1988, p. 1) Com efeito, não faria sentido que, com a expressão “controle”, tenha o legislador pretendido referir ao sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição para a atuação harmônica entre os Poderes, vez que esse integra decisões de natureza administrativa, legislativa e jurisdicional, contemplando, por conseguinte, medidas de ordem política, cuja motivação sequer é exigida do agente público.

A razão de ser da norma é, como explicita a ementa da lei, fomentar a segurança jurídica, tendo em vista a existência de decisões que invocavam princípios ou normas jurídicas abertas ou indeterminadas de forma nitidamente deficiente, sem demonstrar as razões que autorizavam a aplicação do instituto no caso concreto, com o devido cotejo de interesses, detalhando-se o juízo de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.  No plano judicial, a inclusão de norma que regula a fundamentação na Lei de Introdução vem em reforço às regras de motivação constantes do NCPC, revelando que o alcance da norma não se limita às questões de direito público, mas a toda decisão que envolva a aplicação de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados.


2. Necessidade de indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas da decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa

Dispõe o atual art. 21, caput, da Lei de Introdução que “A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.” O parágrafo único estabelece que referida decisão “deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais”, sendo certo que é vedado “impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.” (BRASIL, 2018 p. 1)

Ao decretar a nulidade ou anulação de ato ou contrato administrativo, pois, deve a autoridade julgadora explicitar as consequências jurídicas da decisão, notadamente no plano administrativo. Trata-se de novo ônus para o agente público que, a bem da segurança jurídica, não mais poderá decidir relegando a momento posterior a elucidação dos efeitos. Tal norma encontra-se em consonância com a anterior, que prevê o dever de consideração das consequências práticas antes da prolação da decisão.

Vale dizer: nos termos dos arts. 20 e 21, da LINDB, as consequências ou efeitos práticos da decisão administrativa ou judicial que versem sobre a anulação de atos públicos devem ser referidos tanto na fundamentação quanto no dispositivo do julgado.

Evidentemente, ambas as normas contemplam certo idealismo. Em casos complexos, e, mormente, naqueles com repercussão geral, aptos a alcançar uma multiplicidade de sujeitos de direito e, por vezes, toda a coletividade, é pueril esperar que a autoridade seja capaz de vislumbrar, de antemão, todos os possíveis efeitos da decisão. Assim como o legislador não consegue antever todos os fatos e circunstâncias passíveis de regulação jurídica, tanto que, precisamente por isso, apela ao uso de conceitos jurídicos abertos e indeterminados, não se pode esperar do aplicador e intérprete que seja capaz dessa façanha. Na prática, os novos artigos 20 e 21 do LINDB tentam transferir para o aplicador – e, sobretudo, para o Judiciário, que detém a última palavra sobre as interpretações – a responsabilidade pela insegurança jurídica, a qual, em verdade, é um problema que decorre da incompletude do ordenamento – questão espinhosa de cunho filosófico-jurídico, que atinge todos os sistemas jurídicos do mundo, não se revelando exclusividade do caso brasileiro. É ilusório pensar que, com uma simples “penada do legislador”, transferindo-se ao intérprete o ônus de antever as consequências da decisão, se possa solucionar o problema da segurança jurídica. Sem dúvida, a medida é louvável, porquanto representa um esforço no sentido de racionalizar as decisões e promover a cultura da segurança jurídica. Seria fantasioso, contudo, imaginar que, doravante, as decisões não mais produzirão impactos imprevistos. A pretensão de revelação antecipada dos efeitos da decisão, nesse sentido, equivale à expectativa de identificação totalizante dos fatos jurídicos pelo direito, revelada impossível após a ampla codificação do século XIX. A tentativa de regulamentação exaustiva da fundamentação pós-positivista conduz, pois, ao retorno da problemática vivenciada sob a égide da hermenêutica clássica, que, ao fim e ao cabo, resume-se ao problema da incompletude do ordenamento.

Nesse contexto, a única interpretação possível para os dispositivos é a de que a autoridade julgadora tem o dever jurídico de levar em consideração na fundamentação e explicitar no dispositivo os efeitos ou consequências práticas mais evidentes, entendidos como tais como os que decorrem diretamente da decisão, vinculando as partes e terceiros por consectário lógico do julgado, bem como os efeitos gerais à sociedade e ao Estado perceptíveis em seus aspectos essenciais pelo homem médio, além daqueles que, a despeito de não se revelarem aparentes, tenham sido suscitados pelas partes nos debates ocorridos no processo. Não há como esperar do julgador, magistrado ou administrador, uma visão abrangente da totalidade dos fatos sociais, inclusive porque, nas relações jurídicas de trato continuado e nos casos de formação de precedente administrativo ou judicial, os efeitos da decisão alcançam fatos futuros, cujas especificidades poderão contemplar circunstâncias impensáveis por ocasião da edição do julgado. Ainda no que se refere aos fatos presentes, porém, é impossível ao julgador-intérprete identificar, a priori, todos os possíveis efeitos de sua decisão.

3. Dever de consideração dos obstáculos e dificuldades reais do administrador público na interpretação de normas administrativas e regras para a aplicação de sanções a agentes públicos

A lei impõe, ademais, às autoridades encarregadas do julgamento de causas que demandem a interpretação de normas sobre gestão pública, o dever de considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.” (BRASIL, 2018, p. 1) É o teor do caput do novo art. 22, da LINDB, o qual prevê, ainda, em seu § 1º que, “Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente”. (BRASIL, 2018, p. 1)

Tal norma, evidentemente, não pode servir de escudo para o administrador ímprobo, relapso ou negligente. Verifica-se, do texto legislativo, preocupação excessiva com a defesa de certas posições administrativas, como se as esferas administrativa e judicial, na apreciação da regularidade das condutas, já não atentassem para as circunstâncias que impõem, limitam ou condicionam o comportamento dos agentes públicos. O direito público possui vasto número de princípios próprios, muitos dos quais favoráveis ao administrador, tais como a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e a supremacia do interesse público sobre o privado. Ademais, a boa aplicação do direito sempre exigiu que as especificidades de qualquer caso concreto, aí incluídos os relativos à gestão pública, fossem levadas em consideração quando da interpretação das normas incidentes, pelo que a nova disposição, a nosso ver, não parece acrescentar muito, soando mais como um apelo do Executivo pela prolação de decisões mais atentas à realidade do gestor público.

Em parte, o mesmo se pode dizer do § 2º, do referido dispositivo, segundo o qual, “Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.” (BRASIL, 2018, p. 1) Embora a previsão tenha o condão de estabelecer um novo requisito formal de validade para as decisões que aplicam penalidades a agentes públicos, no que tange à substância dos julgamentos, novamente, a norma pouco ou nada acrescenta, pois, do ponto de vista do conteúdo, tais circunstâncias já deveriam integrar o objeto da análise do julgador, como manifestação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Nos termos do art. 2º, da Lei n.º 9.784/99, a Administração Pública deve respeito aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência, cabendo, nos processos administrativos, a observância dos princípios da atuação conforme a lei e o Direito e da “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”. (BRASIL, 1999, p. 1) Ainda assim, é possível vislumbrar na norma certo grau de inovação, na medida em que, expressamente, traz para a esfera do direito administrativo sancionador conceitos nitidamente associados à aplicação da lei penal, como “agravantes”, “atenuantes” e “antecedentes”, impondo, ainda, o dever de o julgamento apreciar tais circunstâncias e pautar-se na “natureza” e na “gravidade” da infração cometida.

O § 3º estatui que “As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato.” O dispositivo cria, como se vê, o dever de proceder-se a uma “dosimetria” na aplicação de sanções aos administradores públicos, atraindo, pela opção terminológica, a plêiade principiológica de aplicação da lei penal, que, consoante a jurisprudência construída nas últimas décadas, pauta-se por regras rígidas para a fixação de pena em quantidade superior ao mínimo legal. Estabelece, ademais, o dever de que sanções da mesma natureza e relativas ao mesmo fato sejam levadas em conta quando da fixação do quantum de determinada sanção.

Uma leitura apressada poderia sugerir que o dispositivo estaria a disciplinar o impacto dos “antecedentes” do administrador na quantificação de sanções por infrações da mesma natureza. Não é esse, contudo, o objeto do § 3º, pois a consideração dos antecedentes já foi determinada no § 2º e, neste momento, ao revés, fala-se em sanções já aplicadas “relativas ao mesmo fato”, o que afasta a compreensão de que se referiria a antecedentes, dado que os fatos em apreço são os “mesmos”. Aqui, a norma é protetiva do administrador e determina que, quando da fixação de uma sanção, deve ser abatido do quantum o valor das sanções já aplicadas em razão do “mesmo fato”, o que faz sentido quando se recorde que, no Brasil, vige a independência de instâncias. Assim, se um agente, por hipótese, comete ato ilícito com repercussão nas esferas administrativa, criminal e de improbidade administrativa, por consectário lógico, a indenização fixada nas esferas criminal e administrativa deve ser abatida de indenização da mesma natureza fixada, em função do mesmo fato, por exemplo, na esfera de improbidade administrativa (que abrange, entre as sanções previstas, a reparação civil).

A nosso ver, tal norma é extremamente problemática, pois a lei fala que o abatimento do quantum fixado nas demais esferas deve ocorrer durante a “dosimetria” da sanção, isto é, no momento de sua aplicação. Ocorre que, para que esse abatimento se pudesse dar de forma adequada, necessário seria que os quantitativos fixados em decisões anteriores fossem definitivos, o que significa, no âmbito judicial (criminal e de improbidade administrativa), que a decisão precisaria ter transitado em julgado, e, no âmbito administrativo, que estivesse prescrita a pretensão de revisão da decisão administrativa pela via judicial. No caso brasileiro, contudo, sabe-se que tais situações podem levar anos para sua verificação, tempo esse que, no mais das vezes, é suficiente para a prescrição da pretensão punitiva ou de reparação civil em algumas das demais esferas de atuação, ferindo de morte o princípio da independência de instâncias, cuja razão de ser é, justamente, permitir a punição do agente, assegurando a aplicação da lei e evitando a impunidade.

Em nossa perspectiva, o disposto no § 3º, do art. 22, da LINDB, não pode ser aplicado literalmente, devendo ser interpretado como um dever de consolidação das sanções aplicadas, a ser efetuado em sede de execução, após se terem tornado definitivas as condenações em todas as esferas de responsabilidade do agente (administrativa, criminal e de improbidade administrativa).

4. Dever de criação de regime de transição em decisões que fixem nova interpretação sobre norma de conteúdo indeterminado

Consoante o art. 23, da Lei de Introdução, incluído pela nova Lei n.º 13.655/2018, a decisão administrativa, controladora ou judicial “que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito, deverá prever regime de transição quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.” (BRASIL, 2018, p. 1)

A norma autoriza e determina, tanto no âmbito administrativo quanto no judicial, em qualquer grau de jurisdição, a adoção da técnica da modulação dos efeitos da decisão que fixa no caso concreto o significado de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, prerrogativa prevista em lei, anteriormente, de forma expressa, apenas para o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado de constitucionalidade. (BRASIL, 1999b, p. 1). Trata-se de uma das mais importantes inovações da reforma de 2018 na LINDB, na medida em que um poder anteriormente conferido apenas ao Supremo Tribunal Federal, a ser efetuado por decisão de 2/3 de seus membros, tendo em vista razões de “segurança jurídica e excepcional interesse social” (no art. 27, da Lei n.º 9.868/99), agora, é outorgado a qualquer juiz ou administrador público pelo simples fato de se estar diante da definição do conteúdo de uma norma dotada de vagueza conceitual. A previsão parte da premissa de que a concretização de princípios fundamentais, valores jurídicos ou normas jurídicas abertas e indeterminadas, por força da maleabilidade dos conceitos, exige tratamento semelhante ao do juízo de constitucionalidade, precisamente porque, em ambos os casos, é sempre necessário interpretar o ordenamento jurídico em sua integralidade, havendo que se ponderar valores contrapostos assimilados pela lei e pela constituição. É uma mudança de paradigma, o reconhecimento expresso pelo direito positivo da necessidade de utilização, em caráter geral, inclusive na esfera administrativa, de métodos de interpretação pós-positivistas, que pressupõem o dever de integração e criação do direito.

O texto legal não obriga o intérprete, contudo, a sempre fixar regime de transição por ocasião da definição de interpretação que imponha novo dever ou novas condições para o exercício de um direito, pois estabelece que isso deva ocorrer apenas “quando indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito seja cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais.” (BRASIL, 2018, p. 1) O legislador incorre, como se vê, em postura recursiva, na medida em que utiliza conceitos jurídicos abertos e indeterminados para determinar um comportamento a ser efetuado pelo intérprete quando do tratamento de conceitos jurídicos abertos e indeterminados. O dever de fixar regime de transição ocorre somente quando for “indispensável” para que o cumprimento da nova interpretação se realize de modo “proporcional”, “equânime”, “eficiente” e sem prejuízo aos “interesses gerais”. Como o significado de tais expressões somente pode ser definido no caso concreto, na prática, a obrigação só existe quando o próprio intérprete a reconheça como existente, o que, por óbvio, não pode ser considerado propriamente uma obrigação, mas uma recomendação. A norma representa, portanto, mais do que uma imposição, uma autorização para que se defina regime de transição em casos de mudança interpretativa que estabeleça novos deveres ou condicionamentos de direitos.

Não se deve, contudo, desprezar a disposição, relegando-a apenas ao papel autorizativo. Sempre que o novo dever fixado em interpretação de conceito jurídico aberto ou indeterminado se revele de difícil concretização, por envolver altos custos para sua implementação, ou, ainda, quando a nova interpretação implicar consequências desproporcionais aos administrados, deve o intérprete reconhecer a validade de situações pretéritas, trabalhadas de conformidade com a interpretação anterior, e definir momento futuro para a aplicabilidade plena do novo entendimento, podendo fazer valer, desde já, novos requisitos que não se revelem extremamente onerosos aos seus destinatários. Como o legislador não tinha como prever todas as hipóteses em que exigível o regime de transição, e, ao mesmo tempo, acertadamente, entendeu não ser conveniente impor o dever de modulação dos efeitos em todos os casos que envolvam interpretação de conceitos jurídicos indeterminados – vez que, em alguns casos, razões de interesse público podem autorizar ser a nova interpretação aplicada de imediato – é de se esperar que se forme uma jurisprudência sobre a forma de aplicação da lei que determina o modo de fazer a jurisprudência.

O caráter cogente da norma que obriga o intérprete a fixar o regime de transição, ainda que trabalhado mediante conceitos que, em si mesmos, demandam interpretação no caso concreto, verifica-se do debate envolvendo o veto efetuado sobre parte do dispositivo. A Lei n.º 13.655/2018 incluía um parágrafo único ao art. 23 da LINDB, mas teve o seu texto vetado sob o argumento de que a previsão “reduz a força cogente da própria norma e deve ser vetado, de modo a garantir a segurança jurídica de tais decisões.” (BRASIL, 2018b, p. 1)  Rezava o pretendido parágrafo único que, se o regime de transição, quando aplicável nos termos do caput do art. 23, não estivesse previamente estabelecido, o sujeito obrigado teria direito de “negociá-lo com a autoridade, segundo as peculiaridades de seu caso e observadas as limitações legais, celebrando-se compromisso para o ajustamento, na esfera administrativa, controladora ou judicial, conforme o caso.”  O veto presidencial, fundado em manifestação dos Ministérios do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, da Fazenda, da Transparência e em pareceres da Controladoria-Geral da União e da Advocacia-Geral da União, asseverou que, como o caput do artigo impõe a obrigatoriedade de estabelecimento de regime de transição em decisão administrativa, controladora ou judicial que preveja mudança de entendimento em norma de conteúdo indeterminado quando indispensável para o seu cumprimento, não faria sentido o parágrafo único prever um direito subjetivo de negociação da situação particular ao administrado quando tal norma não fosse cumprida, pois daria a entender que o vício da interpretação que não fixasse o regime de transição poderia ser suprido, enfraquecendo, por conseguinte, o caráter cogente da norma que impõe o dever de elaboração de regime de transição.

O veto, a nosso ver, se revelará, na prática, inócuo, pois, sendo demonstrado pelo administrado que a modulação de efeitos, no caso concreto, era “indispensável para que o novo dever ou condicionamento de direito” pudesse ser “cumprido de modo proporcional, equânime e eficiente e sem prejuízo aos interesses gerais”, e tendo e decisão interpretativa sido omissa na fixação do regime de transição, por óbvio, haverá direito subjetivo à fixação da norma transitória, ainda que particularmente, o qual poderá ser definido mediante ação declaratória, na via judicial. A proposta do texto vetado era permitir que tal direito pudesse ser exercido na via administrativa, mediante “compromisso para o ajustamento”, comportando, ainda, o diferencial da previsão expressa do direito subjetivo ao ajuste. A despeito da ausência de previsão que resultou do veto, não nos parece nem que tenha deixado de existir o mencionado direito subjetivo, nem que seja vedado à Administração celebrar acordo para a definição de regra de transição no caso concreto, caso solicitado pelo jurisdicionado mediante requerimento administrativo, respeitadas, naturalmente, as regras de hierarquia e competência das autoridades administrativas e as “limitações legais”. (BRASIL, 2018, p. 1)

5. Irretroatividade de nova interpretação de cláusula geral para efeito de invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa

A lei estabelece, também, o dever de que as novas interpretações sobre normas de conteúdo aberto ou indeterminado não retroajam para o efeito de invalidar atos administrativos praticados em consonância com a orientação da época em que foram editados (consagração do princípio tempus regit actum para a averiguação da validade dos atos públicos).  Dispõe o art. 24 que, “A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.” Esclarece o parágrafo único, ainda, que se consideram orientações gerais “as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público.” (BRASIL, 2018, p. 1)

A norma não é de aplicação tão fácil quanto pode parecer, na medida em que a “jurisprudência judicial ou administrativa majoritária”, por vezes, não é um dado tão evidente, o que permite antever-se a existência de discussões e debates, inclusive no plano judicial, de questões voltadas à definição do que seja a orientação dominante, ao ponto de assegurar a irretroatividade da nova interpretação. Na esfera judicial, o sistema de precedentes vinculantes instituído pelo Novo Código de Processo Civil auxiliará na identificação do que seja a jurisprudência majoritária, podendo-se destacar como tais as orientações mais recentes fixadas em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADI, ADC ou ADPF), as decisões de controle difuso de constitucionalidade do STF no regime da repercussão geral, as decisões do STJ em sede de recursos especiais repetitivos, as decisões dos tribunais locais em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) ou Incidente de Assunção de Competência (IAC), as súmulas vinculantes, as súmulas de jurisprudência do STF em matéria constitucional e do STJ em matéria de direito federal e as orientações do plenário ou do órgão especial dos tribunais locais, nos casos em que a discussão se limite ao âmbito territorial da competência de um Estado federação. (BRASIL, 2015, p. 1) Já no campo administrativo, ter-se-á que levar em conta, como orientação dominante, as provenientes das autoridades administrativas de maior nível hierárquico, somente se cogitando do reconhecimento do valor jurídico da praxe reiterada de órgãos de hierarquia inferior quando ausente normativa específica sobre a matéria.

6. Previsão vetada: ação declaratória da validade de ato público, de rito especial, com sentença de eficácia erga omnes

A Lei n.º 13.655/2018 previa, através do que seria o texto do art. 25 do LINDB, a possibilidade de a administração, “por razões de segurança jurídica de interesse geral”, propor ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja sentença faria “coisa julgada com eficácia erga omnes”. O dispositivo previa que a ação tramitaria segundo o rito da ação civil pública, com participação do Ministério Público, que poderia se abster de contestar ou, até mesmo, aderir ao pedido declaratório da validade do ato público. A declaração judicial poderia abranger, além da validade em si, “a adequação e economicidade dos preços ou valores previstos no ato, contrato ou ajuste.” (BRASIL, 2018, p. 1)

O artigo foi vetado ao argumento de que a ação declaratória preconizada pelo dispositivo, cuja sentença teria eficácia para todos, podendo inclusive dispor a respeito de preço e valores, poderia acarretar na propositura de excessivo número de demandas judiciais injustificadas, tendo em vista a abrangência de cabimento da ação por “razões de segurança jurídica de interesse geral” o que, na prática, poderia contribuir para maior insegurança jurídica. Ademais, sustentou-se que, ainda que com o juízo de procedência da ação declaratória, a problemática persistiria em relação às decisões administrativas ou de controle anteriores à impetração da ação declaratória de validade, uma vez que a atuação judicial poderia se tornar instrumento para a mera protelação ou modificação dessas deliberações, representando, também, violação ao princípio constitucional da independência e harmonia entre os Poderes. (BRASIL, 2018b, p. 1)

Entendemos conveniente o veto, na medida em que os atos públicos gozam de presunção de veracidade e legitimidade, cabendo ao interessado o ônus de provar, no caso concreto, a desconformidade do ato estatal em relação à ordem jurídica. No que tange aos atos normativos federais, já existe previsão de ação judicial de fiscalização abstrata de sua validade e eficácia, que é a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC, (art. 102, I, a, CF/88), admitindo-se, quanto aos estaduais e municipais, a propositura de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF (MENDES, 2011, p. 131), sendo certo que o potencial de atingimento do interesse coletivo encontra-se, no mais das vezes, precisamente, nos atos normativos. Ainda que determinados atos ou processos de viés concreto tenham grande relevância e alcance social, seja pela importância do objeto, seja pela expressividade dos recursos envolvidos, não se justifica a criação de nova modalidade de ação dotada de eficácia erga omnes com o fito exclusivo de afastar a discussão sobre sua legitimidade do ato administrativo, tendo em vista a possibilidade de propositura de ações de índole individual com esse objetivo.

7. Possibilidade de celebração de compromisso administrativo com o fito de eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público

O art. 26 da LINDB estatui que, para “eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público”, inclusive no caso de expedição de licença, “a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial”. O compromisso, por expressa previsão legal, “buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais”, “não poderá conferir desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral” e “deverá prever com clareza as obrigações das partes, o prazo para seu cumprimento e as sanções aplicáveis em caso de descumprimento.” (BRASIL, 2018, p. 1) O inciso II do § 1º previa, ainda, que o acordo poderia “envolver transação quanto a sanções e créditos relativos ao passado e, ainda, o estabelecimento de regime de transição” (BRASIL, 2018, p. 1), mas teve seu texto vetado, por alegação de violação ao princípio da reserva legal e de ter o potencial de representar estímulo indevido ao descumprimento das previsões legislativas, visando a posterior transação. (BRASIL, 2018b, p. 1)

A lei inova pela previsão expressa da possibilidade de celebração de acordo administrativo com o fito exclusivo de sanar irregularidade na edição do ato, algo que já existia no que tange a atos que representassem potencial dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, quando da participação de alguns dos entes legitimados para a ação civil pública, em relação aos quais já era autorizada a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, nos termos do art. 5º, § 6º, da Lei n.º 7.347/85. (BRASIL, 1985, p. 1) Agora, a Administração resta autorizada a celebrar compromissos voltados a sanar qualquer “situação contenciosa na aplicação do direito público”, podendo fazê-lo inclusive com particulares, desde que não importe em “desoneração permanente de dever ou condicionamento de direito reconhecidos por orientação geral.” Note-se que não pode o administrador, por meio do referido compromisso, promover isenções, afastar obrigações acessórias ou relativizar condicionamentos a direitos de forma “permanente”, podendo, contudo, fazê-lo em caráter temporário, em função da adequação da interpretação às circunstâncias do caso concreto, com a finalidade de evitar a necessidade de solução judicial. Se vedado estivesse à Administração promover qualquer desoneração ou afastar qualquer condicionamento, ainda que em caráter temporário, conteúdo algum poderia ser objeto do compromisso celebrado pelo administrador, tornando a norma insuscetível de aplicação prática.

O dispositivo vem em reforço à interpretação que conferimos ao art. 23, em relação ao qual, a despeito do veto efetuado quanto ao parágrafo único, entendemos possível à administração celebrar compromisso individual voltado à definição de regime de transição que não tenha sido fixado em interpretação de aplicabilidade geral, quando presente situação na qual o regime de transição era obrigatório. Agora, novamente, o inciso II do § 1º do art. 26, que dispunha expressamente que o acordo poderia prever “o estabelecimento de regime de transição”, foi vetado, mas isso não impede que a Administração inclua em seu compromisso o referido regime, haja vista a imposição efetuada pelo caput do art. 23. Vale dizer: se o estabelecimento do regime de transição era obrigatório – conforme afirmado pelo próprio Poder Executivo, na mensagem na qual explicita as razões do veto, trata-se de norma “cogente”, destinada não apenas à esfera judicial, mas também à administrativa –, então, tendo o Estado sido omisso na fixação do mencionado regime quando da interpretação em caráter geral, por óbvio, haverá direito subjetivo do particular ao estabelecimento da regra de transição, podendo a administração rever o seu posicionamento quando da apreciação de requerimento administrativo nesse sentido, no bojo do qual deve ser deferido o regime provisório. Ante o princípio da autotutela dos atos administrativos, a administração tem o dever de anular os seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e de revogá-los por razões de conveniência e oportunidade (art. 53, da Lei n.º 9.784/99). Sendo a fixação de regime de transição, nos casos especificados no art. 23, da LINDB, um dever legal, sua omissão, quando devida a previsão, importa em ilegalidade, que deve ser suprida pela esfera administrativa, podendo ser efetuada tanto em caráter geral, quanto individual, por se tratar de direito subjetivo do administrado. (BRASIL, 2018, p. 1; BRASIL, 1999, p. 1)

O efeito prático do compromisso individual que reconheça o dever de estabelecimento de regime de transição será a revisão da interpretação geral, com aplicabilidade erga omnes da regra transitória, tendo em vista que a multiplicação de processos individuais, que decorreria de um determinado precedente administrativo, implicaria, à evidência, a alteração ex officio da interpretação geral pela Administração, que não tem interesse na repetição desnecessária de atos administrativos. Nesse sentido, em que pese seja evidente a possibilidade de celebração de acordo individual (note-se que a lei o admite inclusive para os casos de “expedição de licença”, que é ato concreto, voltado a um administrado em particular), parece-nos que a intenção do legislador foi que, nos casos que tenham repercussão geral, no sentido de envolverem uma multiplicidade de interessados, o compromisso fosse celebrado já em caráter coletivo, pois, nos termos do art. 26, além da oitiva do órgão jurídico, exige-se, “quando for o caso”, a realização de “consulta pública”, para, presentes “razões de interesse geral”, ser celebrado compromisso com os “interessados”, havendo eficácia jurídica na opção proposital do legislador pela colocação do termo não no singular, mas no plural.

Consoante se extrai do inciso I, do § 1º, do art. 26, novamente, o legislador se utiliza de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados para regular o ato que pretende evitar a ambiguidade decorrente da interpretação de conceitos jurídicos abstratos, evidenciando a dificuldade – e mesmo a impossibilidade – de fixação, a priori, de parâmetros rígidos e presumivelmente claros para a solução de questões jurídicas que envolvam a aplicação de normas de ordem pública. Isso porque as alegações de “irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público” decorrem, no mais das vezes, da incidência de princípios ou de valores normativos de conteúdo incerto, cuja densificação admite múltiplas acepções, conduzindo a conflito interpretativo. Quando o legislador afirma que o compromisso deve contemplar solução jurídica “proporcional”, “equânime”, “eficiente” e compatível com os “interesses gerais”, retorna à incerteza jurídica que deu origem ao problema, na medida em que não há como saber, de antemão, o que tais expressões deverão significar no caso concreto, não se podendo afirmar, por conseguinte, que as partes entrarão em acordo quanto a esse significado, perspectiva que seria, no mínimo, ingênua. Em decorrência, a norma tem mais o condão de explicitar que o compromisso celebrado afasta a possibilidade de alegação futura de violação aos mencionados preceitos do que o de fixar uma diretriz para a solução em si, a qual será alcançada não pela densificação dos conceitos em apreço, mas pela fixação dos efeitos práticos a que as partes venham a aderir de comum acordo.

8. Possibilidade de fixação de indenização por dano processual no bojo da própria decisão do processo administrativo ou judicial

O art. 27, caput e parágrafos, estatui que a decisão do processo, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, “poderá impor compensação por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos”, devendo ser motivada e proferida exclusivamente após manifestação das partes sobre o seu cabimento e valor, cabendo a celebração de “compromisso processual” entre os envolvidos voltado a prevenir ou regular a compensação. (BRASIL, 2018, p. 1)

O dispositivo impacta com maior relevância na esfera administrativa, pois, no âmbito judicial, já havia institutos voltados à composição do dano processual, como a indenização por litigância de má-fé (arts. 79 a 81, art. 142 e art. 536, § 3º, NCPC) e a multa por ato atentatório à dignidade da Justiça (art. 77, §§ 1º e 2º,art. 161, parágrafo único, art. 334, § 8º, art. 772, II, art. 777 e art. 903, § 6º, NCPC), os quais, por expressa disposição legal, deveriam ser liquidados nos mesmos autos da ação principal (art. 777, NCPC). No plano administrativo, contudo, previsão semelhante não existia, de modo que, agora, pode o administrador fixar o montante da indenização, de modo a evitar prejuízos “anormais” ou “injustos” resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos. (BRASIL, 2015, p. 1; BRASIL, 2018, p. 1)

 O “compromisso processual” a que se refere o § 2º, à evidência, é prévio à ocorrência do dano, visto que a lei o admite para “prevenir” ou “regular” a reparação pelo dano moral ou material decorrente do processo. (BRASIL, 2018, p. 1) Não se trata, portanto, da simples transação para a composição do dano processual, mas de um negócio processual envolvendo a regulação da conduta das partes no curso do processo, à semelhança do que já ocorre no âmbito judicial pelas regras definidoras dos atos de litigância de má-fé e de atos atentatórios à dignidade da Justiça (note-se que a lei fala em compromisso “processual”, e não em compromisso para a composição do “dano processual”). Trata-se de instituto que visa a desestimular a prática de atos incompatíveis com a boa-fé e o dever de cooperação das partes no curso do processo administrativo, visando à solução da crise de direito material na esfera administrativa de modo efetivo e consentâneo com a verdade dos fatos, em atendimento ao princípio constitucional da eficiência e da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII c/c art. 37. caput, CF/88).

9. Responsabilidade pessoal do agente público por decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro

Em que pese a jurisprudência já admitisse a responsabilização nesses casos, o art. 28 da Lei de Introdução passa a dispor que “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.” (BRASIL, 2018, p. 1) A interpretação sistemática, levando em conta o novo regime de motivação das decisões judiciais e administrativas e o dever de fixação de norma de transição nos casos em que obrigatório, instituído pelos novos dispositivos da LINDB, leva à conclusão de que, por “erro grosseiro”, deve ser compreendida: a) a omissão do agente quanto à consideração das consequências práticas da decisão em caso de julgamento com base em valores abstratos (art. 20, caput), inclusive com demonstração da necessidade e adequação da medida imposta, em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único); b) a indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas em caso de invalidação do ato público (art. 21, caput); c) a consideração das dificuldades e obstáculos reais do gestor público, no caso de decisões que envolvam normas relativas à administração pública (art. 22); d) a desconsideração da interpretação vigente à época da edição do ato administrativo invalidado, com violação ao princípio tempus regit actum (art. 24); e, por fim, e) a celebração de compromisso administrativo voltado a eliminar irregularidade, incerteza ou situação contenciosa na aplicação de direito público com a concessão de desoneração permanente de dever ou condicionamento reconhecidos por orientação geral (art. 26). Em todo caso, porém, devem ser levadas em consideração as dificuldades e impossibilidades teóricas e práticas ao atendimento dos referidos requisitos pelas autoridades julgadoras nas esferas administrativa e judicial, consoante já referido nos comentários acima efetuados em relação aos novos requisitos impostos pela LINDB com a reforma introduzida pela Lei n.º 13.655/2018.  

Por medida de segurança jurídica, e para resguardar a autonomia dos agentes públicos incumbidos de decidir as questões jurídicas no âmbito administrativo e judicial, a responsabilização por “erro grosseiro”, nas hipóteses acima elencadas, somente se pode verificar quando, a despeito de expressamente provocada a se manifestar relativamente à alegada omissão, a autoridade se negar a incluir expressamente o elemento indicado na motivação do julgado, o que, no caso do processo judicial, somente ocorre quando silente a autoridade judicial após a propositura de embargos de declaração e, no âmbito administrativo, quando não suprida pelo administrador a omissão apontada em pedido de reconsideração ou requerimento administrativo inicial ou suplementar, indicando expressamente a omissão que se entenda haver ocorrido, o que pode ser efetuado, inclusive, perante os advogados públicos ou outros agentes incumbidos da edição de pareceres técnicos. Isso porque, ante a complexidade inerente ao ato de julgar e o grande número de processos existentes nos diferentes níveis de julgamento nas esferas administrativa e judicial, é humanamente impossível decidir, sob a contínua pressão por celeridade, sem que, jamais, algum pormenor venha a passar despercebido, sendo que a falibilidade humana, nesse ponto, é o fundamento reconhecido universalmente para a instituição do duplo grau de jurisdição nas diferentes esferas de atuação do Poder Público em todas as nações civilizadas e nos principais organismos internacionais.

Se a parte interessada, a despeito de formalmente cientificada da decisão, não aponta a omissão do julgador quanto a qualquer das novas exigências impostas pela Lei de Introdução, mas, ao revés, prefere provocar a superior instância pela via recursal, eventual reforma ou invalidação do julgado não permite a condenação da autoridade por “erro grosseiro”, sob pena de instituir-se uma responsabilização por aspectos próprios do processo decisório, tanto que instituído regime permanente de revisão da decisão, o que fragilizaria a autonomia funcional do julgador, constituindo meio de intimidação para o livre exercício da jurisdição. Se o sujeito interessado, por sua vez, deixa de recorrer da decisão, produzindo a sua preclusão e inalterabilidade no âmbito administrativo ou judicial, novamente, não há que se falar em “erro grosseiro” da autoridade, que, a despeito da ocorrência de eventual equívoco, agora, não mais tem a faculdade jurídica de alterar o que foi decidido (diferentemente do que ocorre com os atos administrativos em geral, que podem ser modificados a qualquer tempo, em função do princípio da autotutela).

Vale dizer: no âmbito do processo, seja ele administrativo ou judicial, o instituto da preclusão impõe restrições à correção de vícios decisórios, razão pela qual a responsabilidade pela decisão equivocada tem de ser compartilhada entre julgador, sujeitos interessados e todos os demais agentes que participem do processo. Não por outro motivo o sistema encontra-se estruturado em diferentes níveis hierárquicos de julgamento, com previsão geral da possibilidade de revisão do que foi decidido, tanto pela própria instância prolatora da decisão quanto pelas instâncias recursais. A eventual omissão do julgador quanto a requisitos de fundamentação, por vezes complexos e de difícil verificação, tal como instituídos nos novos dispositivos da LINDB, não pode ser validamente utilizada para caracterizar “erro grosseiro” quando as próprias partes interessadas – as quais, melhor do que qualquer outro sujeito, podem visualizar os aspectos relevantes da discussão – se mantiveram silentes quanto a eventuais pontos de interesse.  Até mesmo nos casos em que a decisão envolva questão urgente, em que seja inviável a revisão por recurso, é preciso interpretar restritivamente e cum grano salis o conceito de “erro grosseiro” em relação à autoridade julgadora ou encarregada da edição do parecer técnico, que se encontra pressionada pela situação de fato, e, em tudo, fica adstrita à narrativa e aos elementos de prova trazidos pelo autor da demanda, não se podendo cogitar de sua responsabilização quando não expressamente apontada na petição inicial ou no requerimento administrativo a consideração dos aspectos aplicáveis dentre os integrantes das novas disposições da Lei de Introdução.

O referido temperamento à literalidade do texto legal é indispensável ao salutar funcionamento do sistema jurídico, pois, do contrário, os agentes públicos encarregados das decisões nas esferas administrativa ou judicial sofreriam evidente intimidação em caráter geral quanto à edição de julgamentos contrários à Administração Pública. Sempre que a situação exigisse a invalidação de atos públicos submetidos à sua apreciação, restrita estaria a liberdade do agente público encarregado da decisão, ante o temor de ser arbitrariamente responsabilizado por suposto “erro grosseiro” consistente na omissão ou equívoco quanto à aplicação dos extensivos requisitos legais para a fundamentação da medida imposta, instilando-se no julgador a propensão a decidir sempre em favor da validade do ato público, o que não se pode admitir no Estado Democrático de Direito. Se, por um lado, é necessário estimular a segurança jurídica e a adequada motivação das decisões judiciais, por outro, não se pode privar os juízes, administradores e advogados públicos da necessária autonomia no exercício de sua atividade profissional, indispensável para o adequado funcionamento do sistema jurídico e para a defesa dos valores constitucionais, inclusive democráticos, em face do possível arbítrio dos detentores do poder político estatal ou da ocorrência de fraudes de qualquer sorte na condução das questões de Estado. 

A responsabilidade pela segurança jurídica não pode ser relegada integralmente ao aplicador e intérprete da norma, pois, como já referido, decorre de um problema filosófico-jurídico associado à incompletude do ordenamento. É, portanto, algo muito mais amplo e que extrapola, em muito, a mera deficiência na fundamentação da decisão. A segurança jurídica, tal como a justiça, é um valor jurídico e um ideal a ser perseguido por todos os que operam o Direito e o processo, desde o encarregado da postulação inicial até a autoridade incumbida da decisão em última instância. Não se pode exigir dos julgadores mais do que têm condição de ofertar, devendo-se desconfiar de previsões legislativas que, a pretexto de propiciar segurança jurídica, restringem a autonomia e a liberdade de agentes públicos encarregados de decisões com potencial de invalidar atos ilegais ou inconstitucionais do Poder Público.

Nessa ordem de ideias, adequado o veto efetuado ao § 2º, do art. 26, que instituída a possibilidade de se requerer autorização judicial, em procedimento de jurisdição voluntária, para a celebração de compromisso com o fim de “excluir a responsabilidade pessoal do agente público por vício do compromisso, salvo por enriquecimento ilícito ou crime.”  (BRASIL, 2018, p. 1) A uma, porque não se deve interpretar amplamente a responsabilidade do agente público na celebração do compromisso, devendo-se proceder ao temperamento acima delineado, à luz das dificuldades inerentes ao processo interpretativo e, a duas, porque, tal como assinalado nas razões do veto, haveria, no caso, uma esdrúxula interferência do Poder Judiciário na edição de um ato administrativo, comprometendo a forma de controle dos atos do Executivo pelo Judiciário instituída pela Constituição segundo a conformação atribuída pelo texto constitucional ao princípio da separação de Poderes. (BRASIL, 2018b, p. 1)

O texto aprovado pelo Legislativo continha 3 (três) parágrafos adicionais ao caput do art. 28, os quais, contudo, foram vetados. O § 1º dispunha que não se consideraria erro grosseiro “a decisão ou opinião baseada em jurisprudência ou doutrina, ainda que não pacificadas, em orientação geral ou, ainda, em interpretação razoável, mesmo que não venha a ser posteriormente aceita por órgãos de controle ou judiciais.” (BRASIL, 2018, p. 1) O veto assinalou que “A busca pela pacificação de entendimentos é essencial para a segurança jurídica. O dispositivo proposto admite a desconsideração de responsabilidade do agente público por decisão ou opinião baseada em interpretação jurisprudencial ou doutrinária não pacificada ou mesmo minoritária. Deste modo, a propositura atribui  discricionariedade ao administrado em agir com base em sua própria convicção, o que se traduz em insegurança jurídica.” Entendemos que o veto, no caso, não produzirá o efeito almejado, pois o conceito de “erro grosseiro”, tal como defendido acima, não pode ser trabalhado na perspectiva da jurisprudência dominante, que, por vezes, não é objeto de fácil constatação. Ademais, é preciso resguardar a autonomia interpretativa do agente, a quem incumbe, inclusive, interpretar o significado da própria jurisprudência. Atribuir responsabilidade pessoal pela interpretação é temerário e restringe a liberdade do agente público incumbido do dever de decidir, revelando-se postura arbitrária em favor da manutenção dos atos do Poder Executivo. Ao menos no que tange às decisões do Judiciário, tal interpretação seria flagrantemente inconstitucional, pelo que deve ser rechaçada.

Dispunha o § 2º que “O agente público que tiver de se defender, em qualquer esfera, por ato ou conduta praticada no exercício regular de suas competências e em observância ao interesse geral terá direito ao apoio da entidade, inclusive nas despesas com a defesa,” estabelecendo o § 3º que, “Transitada em julgado decisão que reconheça a ocorrência de dolo ou erro grosseiro, o agente público ressarcirá ao erário as despesas assumidas pela entidade em razão do apoio de que trata o § 2º deste artigo.” (BRASIL, 2018, p. 1) A Presidência da República vetou os dispositivos ao argumento de que criavam direito subjetivo ao apoio da entidade na defesa do agente público sem estabelecer “exclusividade do órgão de advocacia pública na prestação”, podendo impor a cada entidade “dispêndio financeiro indevido, sem delimitar hipóteses de ocorrência de tais apoios nem especificar o órgão responsável por esse amparo, o que poderia gerar significativos ônus sobretudo para os entes subnacionais.” (BRASIL, 2018b, p. 1)

Nota-se, pois, que o veto não se fundou na inadequação ou impossibilidade de atuação do órgão de advocacia pública na defesa do agente, mas, tão somente, na problemática financeira que poderia decorrer da escolha, pelo agente, de um ente privado para a sua defesa. O veto reforça a ideia de que a responsabilidade do agente deve ser interpretada restritivamente, não se podendo cogitar da inauguração de uma era de “caça às bruxas” com a finalidade exclusiva de sancionar agentes cujo intento exclusivo é atuar com regularidade na aplicação do direito. O crime, a fraude, o dolo ou o erro efetivamente grosseiro devem, de fato, ser objeto de responsabilização, mas o lapso, o equívoco ou o deslize justificado pelas circunstâncias, notadamente nos casos em que a parte não aponte ao julgador a sua ocorrência, não podem ser validamente imputados ao agente incumbido da decisão, com a pesada sanção pelo ressarcimento de quantias, por vezes vultosas, decorrentes dos julgamentos envolvendo a complexa aplicação do direito público, sob pena de instaurar-se grave cenário de instabilidade e temor que impeça o livre exercício da jurisdição.  

10. Possibilidade de realização de consulta pública para a edição de atos normativos pela Administração Pública no âmbito dos três Poderes

De acordo com o art. 29, “Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.” (BRASIL, 2018, p. 1) Nos termos do § 1º, deve ser publicado ato de convocação que materialize a consulta pública, contendo minuta do ato normativo e fixando prazo para contribuições. O § 2º estabelecia o dever de publicação, preferencialmente por meio eletrônico, das contribuições e de sua análise, mas teve seu texto vetado por inconveniência, na medida em que “poderia tornar extremamente morosa e ineficiente a sistemática por parte dos órgãos ou Poderes, ou mesmo retardar sua implementação, indo de encontro ao interesse público e recomendando, assim, o veto do parágrafo.” (BRASIL, 2018b, p. 1) 

11. Estímulo à edição de súmulas administrativas, regulamentos, respostas a consultas e demais atos tendentes a reforçar a segurança jurídica

Por último, o art. 30, introduzido à LINDB pela Lei n.º 13.655/2018, estatui que “As autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, asseverando que referidos instrumentos deverão ter “caráter vinculante em relação ao órgão ou entidade a que se destinam, até ulterior revisão.” (BRASIL, 2018, p. 1) Trata-se, como se vê, de recomendação à edição de atos que sedimentem entendimentos sobre matérias de direito público, com o fito de favorecer a aplicação uniforme da lei, prestigiando a segurança jurídica.

No âmbito administrativo, a determinação de imposição do “caráter vinculante” pouco acrescenta, na medida em que o escalonamento hierárquico dos órgãos e agentes administrativos já implica o dever de obediência aos atos normativos provenientes dos níveis superiores da burocracia estatal. Já na esfera judicial, a determinação importa evidente inovação, dado que a vinculação a orientações interpretativas não ocorre, ainda, em caráter geral, relativamente a todo e qualquer precedente, mas apenas àqueles elencados no art. 927, do Novo Código de Processo Civil. O dispositivo, portanto, reforça, no plano judicial, a noção de um sistema de precedentes, na medida em que incentiva a adoção da técnica da vinculação em caráter geral. A tendência, nesse contexto, é a formação, de futuro, de um sistema em que se adote a vinculação precedencial plena, tal como já ocorre na maioria dos países de common law, em que vige a regra do stare decisis, postura que, na prática, já vem sendo adotada pelos operadores jurídicos, para os quais as decisões do STF e do STJ, ainda que em sede de ações originárias ou não dotadas de eficácia formalmente vinculante, representam orientação jurisprudencial importante e precedente judicial a ser seguido pelas instâncias ordinárias da magistratura.

Conclusão

As diversas alterações introduzidas pela Lei n.º 13.655/2018 na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, alegadamente voltadas à satisfação do princípio da segurança jurídica, atribuem pesada responsabilidade ao administrador e juiz na solução de questões de direito público, fixando normas rígidas de fundamentação da decisão jurídica e impondo deveres de abordagem de certos conteúdos no dispositivo, tais como “consequências práticas” do ato decisório ou “regime de transição” para minimizar os impactos negativos das novas interpretações. Optou-se, ainda, por prever a responsabilização pessoal de agentes públicos em caso de “erro grosseiro” na edição de decisões ou opiniões técnicas, sem que se tenha, contudo, procedido a um detalhamento razoável e proporcional do que possa integrar o campo de aplicação da referida expressão, a qual, contudo, pela concomitância junto às novas exigências de fundamentação, somente pode ser entendida, na intenção do legislador, como a omissão na abordagem dos novos requisitos exigidos pela LINDB para a fundamentação e o dispositivo das decisões.

A estratégia adotada, contudo, não se revela adequada. As normas buscam transferir integralmente ao aplicador e intérprete o ônus pela insegurança jurídica, que, em verdade, decorre de um problema filosófico-jurídico associado à incompletude do ordenamento. A segurança jurídica, tal como a justiça, é um valor e um ideal a ser alcançado pelos sistemas jurídicos, e sua busca esbarra em problemas muito mais amplos, que extrapolam, em muito, a simples questão da fundamentação das decisões judiciais ou administrativas. O próprio legislador, ao instituir certos deveres de fundamentação e de conteúdo, ao tentar regulamentar a interpretação de conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, viu-se na necessidade de utilizar conceitos jurídicos abertos ou indeterminados, relegando, novamente, ao intérprete, o poder de definir, no caso concreto, o significado da regra que se destinava a reger o processo de interpretação. Isso se dá porque a previsão rígida e engessada de situações já se revelou, desde o século XIX, medida fadada ao fracasso, ante a impossibilidade de o legislador antever toda e qualquer situação passível de regulação pelo direito, o que conduziu, sobretudo após a 2ª Guerra, à passagem dos métodos hermenêuticos clássicos para a interpretação pós-positivista, que reconhece haver poder criativo centrado nas mãos do intérprete. Se, por um lado, é preciso instituir elementos aptos a conter a discricionariedade e a permitir o máximo de previsibilidade na aplicação do direito, não se pode esquecer o fato de que interpretar, por um imperativo lógico e filosófico, é um poder, tanto que, em última instância, chega a constituir um braço autônomo da atuação do Estado.

A responsabilização pessoal de agentes públicos encarregados da prolação de decisões ou pareceres técnicos nos âmbitos administrativo e judicial por supostos erros na aplicação da lei somente pode validamente ocorrer quando, efetivamente, possam ser considerados “grosseiros”, assim entendidos quando, a despeito de expressamente provocada, a autoridade se mantiver omissa quanto à indicação dos pontos de interesse. Do contrário, estar-se-ia a responsabilizar administradores e juízes por aspectos inerentes ao processo decisório, o que é inadmissível, e a restringir a liberdade no exercício da jurisdição, instilando nas autoridades a tendência por decidir sempre em favor da Administração Pública, ante o temor inerente à responsabilização por questões decorrentes de suas decisões, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito.

Responsabilizar pessoalmente juízes e administradores pela opinião ou pela interpretação no exercício da jurisdição é medida que beira a censura, devendo-se desconfiar de propostas que, a pretexto de garantir a segurança jurídica, restringem a liberdade de agentes públicos encarregados da invalidação de atos do Poder Executivo, que, de um modo geral, podem revelar-se contrários à lei, à Constituição ou a valores caros ao sistema jurídico, inclusive protetivos de interesses de minorias circunstanciais, ou, ainda, ser fruto de fraudes ou outras violações graves à ordem jurídica. O sistema recursal existe, precisamente, para que a jurisdição possa ser exercida com o máximo de liberdade possível, não se podendo restringi-la pela imposição ao julgador do temor pela pesada responsabilidade civil nos casos em que sua perspectiva, na defesa das liberdades e dos valores constitucionais, inclusive democráticos, sejam eventualmente consideradas “erro grosseiro” pelas instâncias superiores, mormente quando existe, para as partes, o direito de rever a decisão mediante o recurso pertinente, ou ainda, de provocar a autoridade para que supra eventual omissão que repute existente.

A segurança jurídica é um valor a ser perseguido por todos os que integram o processo, não podendo ser transferido o ônus pela incompletude do ordenamento, exclusivamente, às autoridades encarregadas da prolação da decisão. Não há como exigir dos juízes, administradores, advogados públicos e demais autoridades incumbidas da edição de opiniões técnico-jurídicas que solucionem, no Brasil, um problema que é universal, compartilhado que é por todas as nações civilizadas estruturadas como Estado de Direito.  É irrazoável e arbitrário, por exemplo, exigir que tais autoridades prevejam todas as consequências práticas eventualmente decorrentes de suas decisões, ou que antevejam todas as possíveis alternativas à invalidação de um ato administrativo, como propugnado, de forma pueril e idealizada, por alguns dos novos dispositivos da Lei de Introdução. O texto precisará ser interpretado à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, havendo que se esperar o que a jurisprudência há de dizer a respeito do assunto, sendo certo, contudo, que a interpretação literal da maioria dos dispositivos há de ser reputada inconstitucional, sobretudo, por violar a necessária liberdade do processo interpretativo, indispensável à concretização da justiça.

Referências

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